Crítica | Cenas de Um Casamento
Em “Cenas de Um Casamento”, Bergman faz seu filme mais alcançável, imitável, imitado e material, justamente por pegar como matéria prima algo tão simplório como o casal da casa ao lado. Ou da sua própria casa.
Muitos se questionam se, em um mundo ideal, a Arte existiria. Eu tenho certeza que sim, porque a perfeição coletiva jamais vai encobrir as falhas que compõem cada ser humano, ou melhor, os sentimentos e desejos inerentes que não podemos evitar e que acabam sendo taxados como falhas pela maneira coletiva como se escolheu entender a vida em sociedade.
E talvez a instituição mais passivo-agressiva a natureza humana seja justamente o casamento. A ideia de que seres livres devem “se prender” a outro pelo resto da vida é assustadora de se pensar, e mais ainda quando constatamos todas as transformações que ocorrem ao longo dos anos de uma vida conjunta. No caso de Marianne e Johan, o relacionamento não veio de um grande amor, mas de uma grande conveniência que se desenvolveu em uma grande peça, onde cada um exerce o papel esperado para que tenham o menor atrito possível. Isso explica o “sucesso” do casal em comparação com seus amigos, que deixam as emoções falarem mais forte, mas também abre uma janela para o vazio que logo percebem existir em si e entre si.
Johan o faz primeiro. Mesmo sendo menos atraente (aos meus olhos, mas acredito que nos da maioria) e menos bem sucedido que a incrível mulher que tem como esposa, é ele quem se questiona o que está perdendo. Marianne o segue apenas anos depois, quando percebe que não importa o quanto se dobre, não o terá de volta.
Bergman, que aqui estava em seu absoluto auge, usa o roteiro e a progressão do casal como principal veículo de seu comentário social. Iniciando a projeção com uma entrevista onde a maneira como respondem escancara tudo de errado com aquele relacionamento, o que vemos é a libertação da mulher e a decadência do homem, ambas provocadas pela mesma decisão impulsiva, mas inevitável e indubitavelmente humana de Johan.
"Ela não é muito bonita, não é ninguém na vida e não acredita que teremos um futuro". Ele diz. E ela nem pergunta o porquê, apenas pede para que ele fique.
Porém se o roteiro, parcialmente modificado pelos atores que desaparecem sob as camadas de seus personagens, é uma força maior nesse projeto do que em outros de Bergman, a atmosfera que toma conta do filme é curiosa: se por um lado os planos fechados, os cenários limitados, os ângulos que diminuem o espaço sugerem uma claustrofobia sufocante, há um quê de carinho na forma como a câmera passeia e alterna entre aqueles seres tão trágicos. Ou melhor, tão penosos, porque de trágico não há nada em um relacionamento que acaba. É apenas mais um acontecimento comum na inexplicável jornada que chamamos de vida.
A granulação excessiva da imagem procura imperfeições nos rostos, as cores lavadas tiram a vida dos cenários, a falta de trilha sonora puxa tudo para o mundano, mas o que poderia ser abrasivo se torna quase reminiscente, de tempos que não voltam, que talvez nem lembramos direito, mas que nos fizeram quem somos. É um filme sobre a inevitabilidade do conflito, mas também sobre a dor das memórias que fizeram Bergman realizar o projeto em primeira mão.
E nunca há um olhar para o agora, há sempre algo a se pensar: o amanhã, o divórcio, a volta para casa e para as vidas comuns, quando a antiga vida comum passa a ser a fuga. Mas é por causa dessa angústia, dessa imprevisibilidade, que duas pessoas que se associavam até se desprezarem descobrem um amor que talvez nunca antes houvesse não fosse a separação.
Repetindo o que uma cliente lhe disse, Marianne teme não ser capaz de amar, e Johan a responde:
"Você me ama do meu jeito e eu te amo do meu jeito".