Crítica | Uma Mulher é Uma Mulher
“Uma Mulher é Uma Mulher” é um filme.
Jean-Luc Godard carrega consigo uma missão auto-imposta, de desconstruir o Cinema o máximo possível para assim libertá-lo, algo que fez desde os primeiros minutos de “Acossado” até os últimos ensaios e curtas que dirigiu já bem velhinho. Filmes como esse evidenciam essa missão, mas também sua paixão - ou suas paixões.
Em suma é uma comédia romântica simples, sobre um casal com problemas porque ela quer um bebê e ele não, mas que se torna revolucionário por sua forma. Ou melhor, podemos chamar um só filme de Godard (excluindo “Acossado”) de revolucionário, ou todos apenas fazem parte do todo, tanto da Nouvelle Vague como de sua obra completa? Sendo este seu segundo longa (ele dirigiu “O Pequeno Soldado” em 60, mas foi lançado apenas em 63) e o primeiro em cores, “Uma Mulher é Uma Mulher” vibra com a novidade do movimento, e com a liberdade permitida por seu antecessor. Se os jumpcuts foram a ruptura, aqui Godard brinca com as lentes distorcendo os cenários, inverte posicionamentos, quebra a quarta parede, corta deliberadamente entre uma conversa e um toca discos, ou entre uma dança e as luzes que se alternam no rosto de Anna Karina.
Além da simplicidade quase realista, ou da encenação carregada com um quase deboche, há verdade, e esta diz só uma: Godard, que havia se apaixonado em “O Pequeno Soldado”, agora está entregue. A atriz (e na época esposa) não é apenas sua musa, mas a alma do filme e da ideia, além de premissa ou roteiro, mas da própria forma. “Uma Mulher é Uma Mulher” é sobre Karina. Se Godard é a luz, ela é o prisma e na melhor das analogias, a câmera é como o pincel que delimita o espírito livre da Nouvelle Vague em sua maior ícone.
Se o efeito dessas experimentações procurasse o choque ou a confusão talvez o filme não funcionasse, mas eles apenas oferecem uma versão romântica (quase bobinha) do cineasta com a forma, tornando evidente suas influências norte-americanas ao passo de que se tornam quase paródias: em um diálogo falam de outros filmes da Nouvelle Vague, em outro posam como Gene Kelly. Mais curioso ainda é como, apesar de parecer desprendido, Godard é um amante das composições de cena: sempre o vermelho e o azul (cores da bandeira), se contrapondo, coexistindo e, nas vezes complementados por algo amarelo, simplificando. É um filme quase nu, talvez o mais experimental de seu primeiro período e que mesmo com esse tom leve e delicioso, consegue provocar respostas emocionais fortes: a câmera corta rapidamente para um plano médio, carregado de Karina, mostrando a frustração de não convencer o namorado a engravidá-la.
Mas como em vários de seus filmes, poucos descobrimos daqueles personagens, que menos existem como pessoas do que servem a ideia do filme, e ter Belmondo entrando e saindo de cena é praticamente um flerte com a própria natureza do movimento. E a ideia, como já disse, é Karina e sua feminilidade, talvez esse sendo o filme onde ela soa menos misteriosa, como se a liberdade da forma a libertasse de verdade.