Crítica | O Lobo Atrás da Porta
É uma pena que no cinema nacional o gênero as vezes - quase todas - fique preterido pela alcunha “nacional”, que antes acompanhava as estantes das locadoras e, agora, se impregnou no imaginário do público.
Este thriller de Fernando Coimbra, vencedor do Grande Prêmio do Cinema Brasileiro de Melhor Longa Metragem e considerado um dos 100 melhores filmes nacionais de todos os tempos pela Abraccine apenas um ano após seu lançamento, parece, ainda assim, nunca ter alcançado o reconhecimento devido. Amplamente inspirado no caso real da Fera da Penha, o filme mostra a história de um casal que ao constatar que sua filha desapareceu, vai à delegacia e, enquanto tentam descobrir o que aconteceu com a menina, acabam descobrindo segredos e mentiras enraizadas em sua vida.
Logo de cara fica evidente que seria muito, muito conveniente que Coimbra, em seu primeiro longa, mergulhasse nas convenções de gênero que envolvem esta história tão macabra e que fora amplamente coberta pela imprensa na época de seu acontecimento. Há absolutamente tudo no acontecimento real que um clássico suspense de detetive requer, mas Coimbra, sábia e moralmente correto, não tentou de forma alguma lucrar em cima da tragédia e preferiu, ao invés disso, oferecer um complexo desenvolvimento de personagem que procura mais entender as condições mentais que levam alguém a tal atrocidade do que romantizá-las. Tudo isso, enquanto pinta um retrato realista e dolorido da vida classe-média-baixa brasileira.
Veja bem, não é que a Rosa de Leandra Leal, magistral em uma das melhores performances de 2013/2014 (lançamento em festivais, lançamento comercial), não figure lado a lado com outras figuras marcantes do gênero nestes últimos anos, mas o longa jamais a trata como um ser superior como a Amy de “Gone Girl”, por exemplo (traço que funciona naquele filme, diga-se de passagem, por não se tratar de uma história real). Afinal, a atriz a compõe como uma mulher extremamente atraente e simpática, revelando sua psicose pouco a pouco e se aproveitando da genial escolha de Coimbra (em junção com o responsável pela fotografia, Lula Carvalho) em utilizar, na grande maioria da produção, planos fechados, que nos colocam próximos daqueles personagens e os prendem nas dimensões da tela. Ela protagoniza uma relação simbiótica com a técnica, pois, além de entender que o roteiro dá espaços claros para que suas camadas sejam despidas uma a uma, ela sabe que a vemos encurralada não apenas pelos muitos acontecimentos que a ferem no desenrolar da narrativa, mas também pelas câmeras, a entregando, então, momentos perfeitos para revelar a índole de sua personagem.
Milhem Cortaz e Fabiula Nascimento, por sua vez, interpretam o lado “social” da história, ao remontar apenas a queda - sem nem ao menos lembrar da ascensão - de um relacionamento típico de sua esfera social. E o roteiro, também, não capitaliza em cima disso, apostando no grande trabalho do design de produção em recriar um ambiente habitável sem ter de reforçar para o espectador que se trata de uma casa simples, onde pessoas simples moram. A cinematografia de Carvalho, inclusive, realça essa sensação ao pintar este mundo de forma lavada, continuamente enegrecendo a palheta de cores conforme sua história se afunila para o sinistro final.
E, talvez por isso, não seja de nenhuma surpresa que um casamento se esvaia, pois quando todo o tempo livre do marido é dedicado a outra pessoa, não é como se apenas a falta de sexo fosse ser o principal problema. Porém, se a excelente química, propositalmente danificada, de ambos funciona em prol do filme, o fato de Cortaz ser consideravelmente mais velho que Leal - e não figurar como um galã do cinema brasileiro - pode levantar dúvidas sobre o que fez aquela jovem tão bela se atrair por um homem simples como aquele. Já suas interações com Nascimento são dotadas de uma acidez corrosiva, que parece diminuir o espaço entre as duas a cada nova cena juntas e, por um momento, jurei que Coimbra evocaria o clássico “Cidade dos Sonhos”.
Construindo a vida daqueles personagens de forma minuciosa e se utilizando do curto tempo da produção da melhor maneira, o cineasta ainda é hábil em esconder, pela maior parte da produção, a verdadeira índole de seus personagens principais e, no caso deste filme, sugiro que assistam sem ler sobre o caso que o inspirou (caso já não tenham lido), pois o impacto será ainda maior.