Crítica | Rosa e Momo (Netflix)
O aspecto mais lindo da arte são as emoções que ela é capaz de provocar.
Subjetiva, mesmo para aqueles que se dedicam a estudá-la, não é possível prever o que vai te emocionar e, mesmo que entenda parte do processo realizado por trás e em frente às câmeras para que este objetivo seja atingido, algumas vezes a resposta é tão genuína que temos que abandonar a razão.
Dirigido por Edoardo Ponti e adaptado do livro de 1986 de Romain Gary, “Rosa e Momo” (ou seu título original: “A Vida Adiante”) conta a história da Madame Rosa, uma ex-prostituta e sobrevivente do Holocausto, e do menino órfao Mohamed, que entra em sua vida quando tenta assaltá-la. Convencida pelo doutor responsável pelo garoto a aceitá-lo em sua casa, Rosa tem de tentar tirar as ruas de Momo, antes que para elas ele retorne.
Acessível para a grande massa afim de um filme bonito e emocionante, Ponti consegue, também, compor uma obra tecnicamente complexa. Apesar de ser um tanto irregular em seus enquadramentos (um tanto incertos, me pareceram), o diretor sabe quando mover a câmera e, principalmente, quando deixá-la parada para que absorvamos o que está sendo mostrado. Ele consegue extrair muito de seu elenco mirim, e a edição consegue provocar risos e emoções variadas ao alternar suavemente entre as muitas pessoas em um mesmo cômodo, dando vida a estes. Além disso, o design de produção é essencial em nos ambientar naquela cidade que porta a beleza italiana, mas talvez esteja longe dos cartões postais.
Porém foi o uso de cor que me deixou mais investido: fazendo um lindo balanço entre as cores primárias (azul, vermelho, amarelo), ele as usa para retratar a conexão e estado de espírito da dupla principal. No começo Momo usa amarelo, Rosa vermelho e há sempre algo azul (cor relacionada à calma e serenidade) em tela. O menino então alterna para um vermelho desbotado quando parece estar baixando suas defesas (necessárias por viver a vida que vive) e chega até a vestir roupas escuras e sem cores marcantes quando se encontra perdido e confuso. Em uma cena particularmente forte, Rosa e Momo veem uma menina, de azul, sendo levada da mãe, de amarelo, como que ilustrando algo que de ambos fora tirado no passado. E reparem nas cores que ambos vestem em sua última cena juntos (a qual comento mais abaixo).
Ainda assim, ao acelerar o ritmo do filme Ponti acaba acelerando, também, algumas passagens importantes da relação de Momo com aqueles a sua volta, o que deve gerar uma certa estranheza (em uma cena brigam, na outra já estão de bem), por mais que o elenco consiga contornar isso com a dedicação que emprestam a seus personagens. Abril Zamora é uma revelação como Lola e o iraniano Babak Karimi tem a voz mais doce e compreensível do mundo com Momo.
Mas é claro que a grande estrela do filme é a gigantesca atriz italiana Sophia Loren, uma das únicas remanescentes da Era de Ouro de Hollywood e que pode aqui voltar a concorrer ao Oscar, cujo ganhou em 1961 se tornando a primeira atriz a fazer o feito sem ser em um filme em inglês. Esplendida aos 86 anos, a atriz dá vida a uma personagem graciosa e querida por todos que a ela conhecem, mas visivelmente afetada pela idade e por uma vida difícil demais, que se estendeu por mais tempo do que vidas difíceis tendem a se estender. Dona de voz firme, aparência frágil e um olhar relutante, mas incapaz de não amar, Sophia está completamente entregue à Madame Rosa, e vê-la decair com o passar do tempo se torna uma dor que todos nós podemos compartilhar. Em uma bela cena, ela dança com Lola e o sol a ilumina por completo (na voz de Elsa Soares, se não me engano). Mais pra frente, percebemos que seu refúgio é no subsolo, onde se sente segura, pois era ali que se escondia nos campos de concentração.
Mas antes de falar deste quartinho, precisamos falar do jovem Ibrahima Gueye, que me lembrou o Buscapé caso este tivesse seguido os passos do irmão. Vivendo aquela que, ao meu ver, é a melhor síntese social, em forma de arte, do século e popularizada por Kendrick Lamar e seu monumental “Good Kid, Maad City” (criança boa, cidade má), Momo fala em uma de suas narrações que não procurava a felicidade e, em diversos momentos, chega a rejeitá-la. Em uma das muitas cenas tocantes do longa, ele chora quando vê o amigo indo embora: talvez de saudade, talvez por este ter sido buscado pela mãe, algo que Momo sabe que não irá acontecer. Logo após isso, Rosa senta ao seu lado e ele procura sua mão. A felicidade ele não poderia porque, provavelmente, a julgava impossível após perder a pessoa mais importante de sua vida, então passou todo esse tempo procurando algo que pudesse preencher a falta que ela lhe fazia.
É aqui que as vidas de uma senhora de 86 anos e de um garoto de 12 se cruzam (e, caso não tenha visto o filme, sugiro que pule este parágrafo), algo que pude entender completamente apenas nos momentos finais do longa, quando Momo leva Rosa de volta para seu refúgio para que passe seus últimos dias ali. Ao cuidar dela vemos como ambos são, de maneira e em épocas diferentes da vida, crianças que necessitam de amparo, amor e afeto, algo que lhes fora recusado por vidas difíceis e circunstâncias além de seus controles, mas que por um breve espaço de tempo lhes fizeram sentir completos, pelo menos outra vez. E se Rosa finalmente se reencontrou com todas as pessoas que perdeu, não sabemos e só saberemos após a morte, mas Momo, por causa dela, encontrou algo que possa chamar de família. Aqui considero impossível que as lágrimas não encham seus olhos, pois “Rosa e Momo” protagoniza um dos melhores retratos da dor provocada pela estupidez da humanidade e como, quem sofre, são aqueles que não tem culpa alguma.