Crítica | Poder Absoluto (1997)

SOBRE O ESTILO DE CLINT EASTWOOD

Entre muitas influências, filmes de 1997 sintetizam a carreira do diretor


Dos dois filmes que Clint Eastwood dirigiu em 1997, Meia-Noite no Jardim do Bem e do Mal é o que melhor sintetiza algumas coisas que mais ou menos o definiram desde Breezy (1973): a falta de disciplina em seguir um rigor formal, o interesse pelo devaneio, pelo desvio, pela deriva, o interesse nas figuras que aparecem ao longo do filme e como estas sempre representam algo quase externo à própria narrativa.

Não é o caso de Poder Absoluto, filme que dá sequência a uma série de obras primas na carreira de Eastwood (talvez a única, mas substancial o suficiente para alavancá-lo de um bom diretor a um grande) vertendo para um caminho que não percorria a um bom tempo. Se sua carreira começou com o código hitchcockiano impregnado em Perversa Paixão (1971), este se dissipou com o tempo, reaparecendo aqui e ali e mais na tecelagem dos filmes do que propriamente em suas imagens - e às vezes justamente ao contrário.

Mas curiosamente, o filme apresenta algum rigor que falta ao seu irmão de ano, e que não apenas comenta sobre essa influência, mas ajuda a entendê-la em conluio com o seu cinema.

Me interessam, para isso, principalmente quatro cenas, que mostram não apenas diferentes pontos de partida para o cinema de Eastwood, mas também como o próprio é capaz não apenas de flutuar entre estes, mas tornar esta flutuação sua principal característica.


A primeira é a cena inicial, onde vemos o ex-ladrão de jóias Luther Whitney (interpretado por Eastwood) no que parece ser uma aula de desenho, sentado em um museu esboçando sua versão de uma pintura de Jesus. A iconografia que surge é clara: estamos em uma espécie de instalação hitchcockiana, semelhante ao museu onde Scottie observa Madeleine em Vertigo (1958), de modo que até o ângulo de visão parece o mesmo - e é interessante notar aqui que, se o filme de Hitchcock tem sua visão vinda dos olhos de James Stewart, o de Eastwood pode parecer menos escopofílico quando o protagonista é quem está sentado no museu, como se fosse ele próprio uma atração, mas temos, em todos os seus filmes nos quais também atua, uma duplicação de sua persona: Clint Eastwood, a figura mítica, e Clint Eastwood, o diretor humano. Portanto, se Scottie (um avatar para Hitchcock) observa Madeleine no museu, Eastwood observa a seu duplo que, nesse e em outros tantos filmes, adota várias facetas e disfarces. Pensando assim, as cenas são praticamente idênticas.

Há também outro dispositivo a ser interpretado: enquanto o protagonista esboça o desenho no seu caderno, temos um breve momento de união entre a figura e o homem, ambos criando uma espécie de versão própria da obra de outro artista. No caso do diretor, uma versão menos obcecada, menos perfeccionista, mais mundana e humanista do cinema de Hitchcock. Pois mesmo nas instâncias onde Eastwood parece esquecer o andar do mundo ao seu redor (como é o caso em Pontes de Madison, 1995), suas preocupações sempre apontam para aspectos que refletem sobre o estado desse mundo, diferentemente do que faz Hitchcock que às vezes parece se isolar entre o idílico e o simulacro.


Mas de modo quase inverso, se Hitchcock fazia filmes inteiros a partir de relações humanas, e dos temas adjacentes que se suscitavam destas (em Vertigo partimos da obsessão de um homem por uma mulher para toda uma genealogia artística), Eastwood normalmente coloca estas relações como pano de fundo para seus personagens, geralmente as expressando por cenas ao mesmo tempo isoladas que não afetam o andar da narrativa, mas que centralizam toda a essência do filme.

Pensemos em como a relação de Stewart e Grace Kelly ocupa e re-articula toda a gênese de Janela Indiscreta (1954), ou como a relação da princesa com Cary Grant é igualmente determinante para Ladrão de Casaca (1955) - filme onde Grant interpreta um ex-ladrão que vive uma vida isolada, mas se vê mergulhado em uma rede de crimes que não são sua culpa.

Já em Poder Absoluto, por mais poderoso que seja o aspecto pessoal-emocional envolvendo o protagonista e sua filha, a relação parece sintetizada em poucas cenas, como é o caso da segunda que quero comentar: quando Eastwood janta à luz de velas, sozinho em sua casa, e olha para uma foto sua segurando uma menina no colo. Enquanto o código e a montagem da cena indicam algo de fúnebre, logo descobriremos que a menina é sua filha, e que não está morta, apenas distante.

A composição da cena, dos signos à disposição espacial, é quase idêntica à uma outra cena no início de The Blue Gardenia (1953), de Fritz Lang. Nela, uma jovem janta à luz de velas com uma foto à mesa, para a qual faz um brinde. Em seguida, a jovem lê uma carta que revela que o rapaz na foto não está morto, apenas a deixou por outra durante seu tempo no exército.

A cena de Eastwood parece se complementar como um reflexo à de Lang: a jovem é filmada da direita, Eastwood da esquerda. A foto do rapaz está na mesa, à esquerda, a da filha em uma bancada, à direita. Ambos os protagonistas examinam um pedaço de papel (a jovem, uma carta, Eastwood, um de seus desenhos), e os dois retratos, além de semelhantes em formato e moldura, parecem estar dispostos no mesmo ângulo.

No filme de Lang, relembremos, a jovem se envolve em um assassinato do qual é suspeita, mas não consegue se lembrar do que aconteceu. Mais a frente, em seu último filme nos Estados Unidos, Lang faria Suplício de Uma Alma (1956) filme que escrevi sobre aqui no Outra Hora, e que divide vários pontos com Jurado #2 (2024), possivelmente também o último filme de Clint Eastwood.

As aproximações entre ambos os diretores podem ser bem exemplificadas com estes quatro filmes. O conceito indefinível de justiça, manchado por uma ambiguidade mundana que torna borrada as linhas entre o certo e o errado, e que também delega o peso de atos e decisões à imprecisão humana, de seres movidos à desejos nem sempre compreensíveis. E que, em algumas pequenas cenas, tocam também no lado mais humano e vulnerável de seus protagonistas.


A terceira cena é um dos mais curiosos dispositivos cênicos dos mais de 40 filmes dirigidos por Clint Eastwood.

Em uma bela transição que vai do esboço de uma mansão à imagem da própria, vemos o protagonista invadindo a propriedade do bilionário Walter Sullivan. Trata-se, antes de falarmos da invasão em si, de uma espécie de inversão do percurso de Blow Up (1966), onde o registro se torna a realidade, e é nela que a mancha se revela. Podemos fazer também outra leitura, pois se anteriormente Whitney havia feito esboços de outras pinturas, onde inicialmente vemos as originais, neste a primeira coisa que vemos é justamente o esboço: a combinar com o que acontece em seguida, podemos dizer que todo o ato é, de certo modo, a obra prima do ladrão de jóias - tanto pelo ato do furto em si, como pelos acontecimentos que acaba testemunhando quando dentro da mansão, se tornado o único capaz de revelá-los ao mundo.

Pois, antes de conseguir fugir com as jóias roubadas, Whitney é surpreendido pela chegada de um homem e uma mulher, dos quais se esconde em uma espécie de sala secreta, que encontra atrás de um espelho. Trata-se de uma sala voyeur, onde o lado de dentro permite enxergar o lado de fora. Se o filme está nos olhos de quem vê, então Whitney se torna o único espectador - e, portanto, criador - do filme que ocorre em sua frente.

Munido do dispositivo cênico, Eastwood filma um contraplano engenhoso: à primeira vista, vemos dois ângulos do homem o qual observa e de sua amante, mas se trata mesmo de um contraplano. Na figura 1 vemos o reflexo do homem ocupando o lugar onde estaria Whitney. Na figura 2, vemos a figura do homem como em uma conversa com Whitney. Uma subversão interna do modo clássico de decupagem, dois personagens um a frente do outro, mas só conseguimos ver um deles.

Em outro detalhe hitchcockiano, vemos com destaque o colar que o homem tira da mulher, que mais a frente seria utilizado como prova de sua culpa no crime que ocorre a seguir.

Ali, olhando de um lugar seguro, Whitney testemunha o presidente dos Estados Unidos (interpretado por Gene Hackman, que faleceu durante a finalização deste texto) tendo um caso com a esposa do bilionário Sullivan, um de seus principais parceiros políticos. Mas logo o sexo se torna violento e, tentando se defender, a mulher chega perto de matar o presidente, mas é assassinada por seus guarda costas. Eis o título e tema do filme, se concretizando a partir do cênico (a organização espacial em torno de um dispositivo visual) e do obsceno (o ato que fere a moral).

Se a testemunha, se o olhar como meio de modificar um cotidiano, é uma herança de Hitchcock, a maneira como isso toca mais na moral que propriamente no risco ao protagonista é um traço puramente langiano. Pois, como figura de mitologia própria que é, o protagonista de Eastwood é também onipotente como personagem, flutuando por entre os planos (e, em duas cenas, dentro do próprio) e as elipses (o momento onde a filha descobre a geladeira vazia é um dos mais belos da carreira de Eastwood), e se disfarçando para passar desapercebido. Não há medo quanto à segurança do protagonista, que parece disposto inclusive em abdicar de sua obrigação moral como testemunha, mas é neste jogo de revelações da natureza humana que surge também o que é próprio de Eastwood, e de nenhum outro.

Assistindo um comício realizado pelo presidente, e sendo o único que sabe o que de fato aconteceu (de certo modo, o artista vendo seu próprio filme, o fotógrafo vendo uma mancha que aparece apenas para ele), um impulso moralista toma conta de Whitney, que entende seu envolvimento no caso como maneira de se redimir dos erros que cometeu em vida.


E por fim, a quarta cena me remete ao uso de espaço de Eastwood, o mesmo que ele se permite modificar conforme a presença de seus personagens, e que por vezes importa menos do que a representação da cena.

Mas se em vários de seus filmes a ação pode não parecer situada em um cenário virtualmente compreensível, não é possível dizer que ele não é sensível e atento a este espaço. Em um momento, o protagonista de Eastwood vira o rosto e vê, de relance, a mansão onde o crime aconteceu. Independente se a montagem e a decupagem entregam um movimento progressivo e compreensivo, há imbuída na cena um peso gravitacional, de um espaço cênico onde o encadeamento pode não ser coerente espacialmente, mas é cinematograficamente. Como um pequeno lembrete na mente do protagonista, este que torce e manipula o espaço como bem entende, está o lugar que o faz ter uma mudança drástica de comportamento.

Antes, o homem que nunca estava em um lugar só, que não criava raízes, que não conseguia se relacionar com a filha. Agora, incapaz de fugir de seus próprios deveres.

Assim, os dois filmes de Eastwood de 1997 se complementam, cada um mostrando uma faceta diferente de seu diretor, que parece nos anos 90 ter não apenas explorado, mas extrapolado seus limites como realizador.

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