CRÍTICA | Queer
EM BUSCA DO TOQUE
Luca Guadagnino reorganiza seu cinema em filme sobre a solidão
Luca Guadagnino ter selecionado O Império dos Sentidos (1976) como um de seus 10 filmes favoritos na Sight & Sound de 2022 é ao mesmo tempo algo previsível e revelador. O longa dirigido por Nagisa Oshima, quem já assistiu sabe, trata de um caso real de assassinato no Japão, onde uma geisha estrangulou seu amante durante o sexo (e depois cortou seus membros e andou com eles no kimono até ser presa). Mas o foco não é o crime, e sim a paixão e a depravação, o cinema de Oshima parte da premissa, mas nasce do envolvimento dos corpos, das texturas e dimensões que surgem do encontro destes e da câmera. Ao longo de duas horas, o diretor propõe uma exaustão desse encontro, diluindo seus atos pela repetição, ao mesmo tempo que concretiza as vontades mais obscuras dos dois dando cara à abstração de seu desejo.
É possível observar ao menos duas heranças do cinema de Oshima, e mais em especial o filme de 76, na obra de Guadagnino. A primeira delas sendo justamente o toque como uma espécie de porta: é a massagem “amigável” de Oliver em Elio, a dança coletiva em Suspiria (2018), o abraço após um ponto em Challengers (2024). Talvez nenhum diretor contemporâneo tenha algo tão seu como Guadagnino tem o toque, que é capaz de mudar drasticamente o rumo de seus filmes, abrindo os para possibilidades antes desconhecidas.
E é interessante tentar traçar as influências do diretor, que diz valorizar suas origens Argelinas até mais do que Italianas. Guadagnino parece mesclar o aspecto nipônico de rejeitar o pudor, tornando o sexo e o desejo parte natural e inevitável da vida, com uma espécie de reimaginação do período helenístico e seu culto ao belo. Mais do que qualquer outro diretor contemporâneo, Guadagnino é sensível, atento e traz um olhar sem pudores ao corpo humano.
Talvez seja possível apontá-lo como um dos nomes centrais no retorno da sexualidade ao cinema estadunidense após uma longo período casto pois, embora se considere um cineasta “internacional”, há nesta última fase de sua carreira uma guinada hollywoodiana, de não apenas trabalhar com astros mas também com temas e gêneros característicos. Ou melhor, de desconstruir as imagens dos astros e reconstruir os gêneros a partir dessa genealogia de influências. Me Chame Pelo Seu Nome (2017) é quase uma interpretação rohmerica do romance, Suspiria uma versão avant-garde do body horror, Challengers uma estilização maneirista do filme de esporte. Não os faz, porém, de um lugar de superioridade, não os rejeita como fazem os patronos do pós-horror, mas os relê.
Não acho particularmente que nenhum destes filmes seja grande (precisaria rever o de 2017), mas todos oferecem ao menos uma articulação cinematográfica de temas e ideias.
Em Queer (2024), Guadagnino faz praticamente o mesmo caminho, mostrando Daniel Craig (que tem sua parcela de símbolos norte-americanos no currículo) como um estadunidense auto-exilado no México que se torna obcecado com um rapaz décadas mais jovem. Se existia um quê de hitchcock nos últimos filmes, na maior parte do tempo diluído por uma influência intermediária (Rohmer, Argento, Allen), aqui o exercício toma forma logo cedo: o personagem de Craig faz de sua vida perseguir e observar o jovem.
Algo que o cineasta tenta concatenar à cenografia, a qual já havia se provado atento, mas que aqui parece ser um protagonista tão grande quanto os corpos. Em um ano onde uma porcaria como Emília Pérez (2024) foi amplamente criticado por “não representar bem o México” e não pelos motivos que devia ser criticado (o fato de ser um filme atroz), é curioso perceber como Guadagnino pouco se importa se sua ilustração do México é fidedigna. Embora situe o filme nos anos 50, Guadagnino adota uma lógica mais de imitação que de emulação, imaginando a Cidade do México como um lugar suspenso, entre a reprodução do real e um caráter onírico, que lembra uma pintura de Giorgio de Chirico.
Há algo de estranho na movimentação por aqueles cenários, como se os elementos tivessem todos o mesmo propósito, mas algo os impedisse de colidirem em uma mesma dimensão. Talvez por ser tão claro que vemos um personagem que beira o estereótipo, interpretado por uma estrela de calibre mundial. Nem sempre gosto das iterações anacrônicas, seja a maneira como o filme assume essa estilização (não há nenhum intuito de enraizar o filme, é como assistir cenas que vão se montando conforme se acrescem os elementos) ou com as músicas do Nirvana, a impressão é de algo proposital mas ao mesmo tempo que fica pelo meio do caminho.
Gosto muito mais de como o filme situa essas escolhas em uma espécie de arqueologia do imaginário: em dado momento, Craig quer levar o jovem para a América do Sul, refúgio comum de filmes dos anos 40 e 50 mas que comumente ficava preso no texto. Como só poderia ser, vemos uma mata opressiva, que torna o que antes era um filme de cheiros (o suor), sabores (o gozo) e texturas (as agulhas) em uma orgia indiscernível, potente demais mesmo para os curiosos.
E daí tudo até que se amarra com a viagem de Ayahuasca, onde retornamos ao toque, ou melhor… quando chegamos ao ponto onde tocar não é mais o suficiente. O que o personagem de Craig quer, com a mítica droga, é entrar nos pensamentos do jovem pelo qual se apaixonou, é ter acesso à todo o seu universo e não apenas ao seu corpo. É aqui que Guadagnino se permite também interpretar os delírios do homem de maneira gráfica, indo além do que fez com filmes anteriores naquela dança da carne, que fica algo entre o cômico e o digno de pena (e nenhum dos dois é necessariamente uma crítica ao filme).
Mas então chegamos à segunda herança do cinema de Oshima: a tragédia que, no que tange Guadagnino, é única e exclusivamente emocional. Craig, em um prólogo semelhante ao de 2001: Uma Odisseia no Espaço (1968), se deita em posição fetal, reduzido a um bebê, traído pelo próprio corpo, e sem ninguém para esquentá-lo. Comparar dois filmes aparentemente tão distintos pode ser um exercício valoroso: se no filme de Kubrick há a necessidade de aprender a se movimentar, no de Guadagnino há apenas uma obsessão, que flerta, tenteia, até transa, mas nunca se concretiza por meio do filme.