Crítica | Suzhou River
VERTIGO ÀS MARGENS
Releitura traz Hitchcock para o cinema do terceiro mundo
Se algo protege James Stewart em sua tríade de filmes como protagonista observador de Hitchcock é justamente seu anonimato. A posição privilegiada da janela em Janela Indiscreta (1954), somada à camada da familiaridade, da normalidade do cotidiano, somada ao contrato velado que todos assinamos de aceitarmos nossa vizinhança como um lugar seguro. Mesmo estando mais perto das outras pessoas observadas do que do observador, todos aqueles universos são protegidos, isolados, acessados apenas pelos olhos do fotógrafo Jeff.
Já em Vertigo (1958), filme que este Suzhou River se inspira diretamente, Stewart está protegido inicialmente pelo anonimato, e embora seu envolvimento com Madeleine o coloque em perigo, este não passa de uma farsa. Sendo apenas uma peça no tabuleiro de Gavin Elster, o ex-policial Scottie pode estar sendo enganado, mas segue “seguro”: o plano não visa tirar sua vida, apenas assaltar sua alma. Além disso, o método escolhido para o assassinato o leva ao limite da testemunha: por ter medo de alturas, Scottie jamais subiria os degraus da torre.
Nos interessa ainda mais sua posição em O Homem Que Sabia Demais (1956) onde, em um Marrocos estrangeiro, Stewart brinca de conhecer os costumes tão diferentes do país, seguro por sua posição metafísica de estrela de cinema, que não consegue pisar em um lugar sem que este se torne imediatamente cenário cinematográfico. Quem é raptado, desta vez, é seu filho, mas por ser quem é, o doutor Benjamin jamais poderia ser alvejado.
Como trazer, então, Hitchcock para o terceiro mundo? Como fazer James Stewart caminhar pela periferia, não como um médico turista, um fotógrafo entediado, um ex-policial apaixonado, todas estas iterações de sua condição de estrela, mas como uma alma amaldiçoada desde o nascimento, que se esgueira por lugares não vistos e, portanto, não seguros?
É o que o cineasta chinês Lou Ye procura responder com uma das mais interessantes releituras de Vertigo, em um filme que propõe um diálogo pungente entre a obra máxima de Hitchcock com A Margem (1967), clássico do Cinema Marginal de Ozualdo Candeias.
Iniciando o filme com imagens flutuantes ao longo do rio que nomeia o projeto, Lou já parte de um afogamento, de uma inundação do protagonista que não é capaz de escapar das águas como fez Madeleine, salva por Scottie. E por óbvio seu filme é sobre a água, sobre o aquário onde uma sereia - ou uma mulher fantasiada de sereia - nada, sobre uma suposta garota afogada que haveria se transformado em sereia, aparecendo como assombração para aqueles que habitam o rio e suas margens.
Lou, por tanto, propõe uma mitologia dos renegados, daqueles que não pertencem à dimensão cinematográfica. Cabe a eles não o comitê, a equipe com cinegrafista, iluminador, eletricista, mas uma singela câmera de vídeo que dá vida a um narrador que participa dos eventos que narra, mas o qual só conhecemos a partir de sua própria visão. Se James Stewart jamais pisaria em um terreno como este é preciso então descorporificá-lo, torná-lo apenas um par de olhos.
Não falamos mais também de uma estrela de cinema vivendo uma profissão basilar/idealizada. O protagonista sem corpo é referido no roteiro como o videógrafo, profissão do novo milênio, sem o glamour de um fotógrafo, sem o prestígio de um médico, sem o respeito de um policial.
Onde mais sucede o filme, no entanto, é que enquanto alguns tentam emular Hollywood a partir de quaisquer sejam os meios que tenham à disposição, Lou faz o caminho inverso. É filmando da margem, é tendo a sensibilidade do local catalisada pela câmera nua (sem aparatos, sem iluminação adequada, sem pós) que o filme evoca toda a dimensão cinematográfica brevemente comentada acima. Alguns ainda falam em Amor À Flor da Pele (2001), mas embora exista um diálogo principalmente em como os corpos se esgueiram e se desencontram, o filme de Kar-wai até pode se encaixar durante a filmagem, mas se constrói previamente a ela: há um cuidado, uma resiliência que se confunde com delicadeza na hora de tornar o filme o retrato de signos que é.
No caso de Suzhou River, o filme só nasce a partir do registro, de modo que a narração me parece até mesmo supérflua. Talvez herança dessa era do vídeo e, portanto, elemento justificável, mas que, enquanto conta uma história, distorce outra. E é nessa mutação constante que o longa se difere, sendo sobre algo (a paixão, obsessão, idealização imagética) mas ilustrando outro algo (a pobreza, a margem, a impossibilidade imagética) tão bem.
Na feiura de Suzhou River há algo de muito lindo. A vontade de contar uma história repetida à exaustão, permitida para estes que a contam apenas a partir da evolução tecnológica (o poder de ter uma câmera a um preço razoável), por si só uma mentira quando abrimos a lente e vemos que o que era pobre segue preso em um mundo do passado, mas que se torna uma verdade quando chegamos no específico, no apontar a câmera e, com ela, enxergar um mundo antes invisível.