Crítica | O Homem Que Copiava

Entre a cópia e o real

Popular filme de Jorge Furtado é um dos mais interessantes experimentos narrativos e teóricos do cinema brasileiro recente


En La Ciudad de Sylvia é a história de um labirinto e de um enigma; das ruas de Estrasburgo e dos rostos femininos captados pela câmera de José Luis Guerín. Sobre uma âncora dramatúrgica mínima (homem retorna a Estrasburgo tentando reencontrar uma mulher que ele conheceu lá seis anos antes), Guerín nos reensina a ver. Nosso homem sem nome (Xavier Lafitte) trafega pelas ruas de Estrasburgo em busca de um rosto. Porém, mais que tudo, ele olha. Sylvie está em todos os lugares e ao mesmo tempo em lugar nenhum, em todos os belos rostos de mulheres que nosso protagonista encontra (são belas as seqüências em que ele faz esboços de rostos femininos em seu cadernos, esboços sempre incompletos, vagos, assombrados por um rosto que ilude o olhar).
— FILIPE FURTADO, 2007

Em 1997, o cineasta espanhol José Luis Guerín realizou um filme experimental que une algumas poucas imagens ficcionais com registros de fotógrafos que teriam desaparecido nos anos 20. Examinando as fotos e vídeos, avançando e retornando em quadros específicos e os contrapondo também com imagens da natureza, Guerín cria uma espécie de filme-colagem que investiga o espaço entre as imagens, as lacunas deixadas por sua falta de organização/explicação e, nos momentos mais assombrosos, os enigmas que habitam dentro de cada fotograma, onde um olhar, um movimento e uma mancha parecem revelar um universo inteiro perdido em um instante, mesmo que esse instante tenha sido registrado.

O filme em questão se chama Trem de Sombras, que parece ser uma espécie de prelúdio para Na Cidade de Sylvia (2007), onde Guerín substitui o objeto de investigação: não vemos mais fotos, mas rostos de mulheres registrados diretamente pela câmera do filme. A busca também ganha nome: um jovem (referido nos créditos apenas como ele) retorna a Estrasburgo em busca de uma mulher pela qual teria se apaixonado anos antes. Sem qualquer informação que não a vaga memória de seu rosto e a certeza de seu nome, ele passa os dias observando mulheres esperando que a linha passe pelo buraco da agulha, e os dois possam se reencontrar.

Se no filme de 1997 Guerín parte do específico (as fotos e registros) para constituir uma visão expansiva e abstrata, no de 2007 vamos do geral (as muitas mulheres que são registradas) em busca do específico (a uma mulher que o jovem procura). Por meio de suas observações e realizando esboços em um caderno, o jovem tenta reconstituir a imagem de Sylvia, uma mulher que o espectador nem mesmo sabe como se parece.

Este definitivamente não é o caso de André, protagonista de O Homem que Copiava (2003), filme de Jorge Furtado que precede o nome e a matriz hitchcockiana, da qual o filme de Guerín viria a se filiar anos depois. Enfastiado por uma rotina sem futuro, o jovem porto-alegrense (interpretado por Lázaro Ramos) passa as noites olhando por um binóculo a janela dos vizinhos do prédio da frente, mais em especial o apartamento de uma jovem pela qual desenvolve um misto de paixão e obsessão. Por sua narração, descobrimos que o nome da guria é Sílvia.

Curiosamente, os filmes parecem fazer uma espécie de caminho inverso por meio do mesmo ato - tanto o de olhar, como o de desenhar. Se o jovem sem nome observa mulheres em busca de Sylvia, André observa Sílvia em busca da mulher. Um parte de fragmentações em busca da imagem idealizada. O outro já conhece a imagem idealizada, mas deve fragmentá-la para poder conhecê-la de verdade - como pode ser observado na cena onde, combinando diferentes planos permitidos pelo reflexo de um espelho, André compõe uma representação virtual do quarto de Sílvia.

Os dispositivos formais de seus diretores se adaptam às buscas de seus protagonistas. O espanhol, por uma colagem que sobrepõe e contrapõe imagens em uma abstração poética, que recusa as palavras. O brasileiro, por um jogo de plano-contraplano calculado e pincelado pela narração de André, que imprime o seu olhar no mundo e seus acontecimentos. Um dos filmes é elusivo como a natureza de sua personagem título. Outro busca uma definição concreta pela patologia de seu protagonista.

O comparativo com os filmes de Guerín serve para situar uma espécie de base cinematográfica na qual o filme de Furtado se filia, uma teoria que vai desde os primórdios do cinema mas se transforma durante os anos 40 e 50, culminando no ano de 1958 com o lançamento de Vertigo (1958), e todas as reverberações causadas pelo filme de Hitchcock.


À BRASILEIRA

O filme de Jorge Furtado é, afinal, um caso curioso na filmografia brasileira. Um filme que, se apoiando mais em Khouri e Reichenbach que no Cinema Novo, Marginal ou mesmo na Retomada, emula uma certa maneira importada de se fazer cinema. Podemos falar de Antonioni, Chabrol, De Palma, todos filhos de paternidade reconhecida.

Mas o diferencial nos filmes de cineastas como Khouri e Reichenbach e neste de Furtado, e que os impede de serem apenas imitações de um cinema que se faz fora do Brasil, é que estes os executam por meio da brasilidade. Com Khouri, são as chácaras inóspitas da burguesia brasileira, isolada em uma redoma de hedonismo que termina por revelar fantasmas nas mentes daqueles que a habitam. Com Reichenbach é uma explosão caótica de figuras, lugares e situações que joga seus protagonistas em direção a uma interpretação quasi-fantástica de cidades e cenários brasileiros. Já com Furtado as coisas só são menos fantasmagóricas (pelo menos, pareciam ser, como veremos a frente) e elegantes mesmo, pois se o protagonista de Janela Indiscreta (1954) é um fotógrafo da vida selvagem enfastiado com a rotina por ter quebrado a perna, o de Furtado é um operador de fotocopiadora enfastiado com a rotina por não ter nenhuma perspectiva no sistema capitalista. Não é preciso dizer que, enquanto um recusa Grace Kelly, o outro coloca a colega de trabalho (portanto, igualmente pobre) em um pedestal.

Assim, o prazer escopofílico, que toma conta do protagonista de Hitchcock, toma contornos bressonianos nas mãos de André. Há, na repetição de sua rotina um esvaziamento, um processo em voga de tornar o homem não mais que um trabalhador cansado. Aspecto comunicado tanto pela montagem sisifiana que o mostra fazendo a mesma coisa com diferentes peças de roupa, como pelos apontamentos específicos que faz sobre repetições do dia a dia (o boa noite da mãe, por exemplo).

A primeira cópia, de um filme sobre estas, está na imagem: mesmo com pequenas diferenças, os dias se tornam iguais.

Parece óbvio, portanto, dizer que O Homem Que Copiava é um filme sobre o capitalismo, mas acho igualmente importante dizer que não é nem contra e nem a favor, mas sobre. Não há, no filme de Furtado, qualquer dívida ao discurso e sim uma aproximação por meio das imagens: enquanto mostra a rotina a partir de uma lógica classicista (clareza nas imagens, no som, na organização do espaço), Furtado esquematiza esta rotina enquanto André reflete sobre sua sistematização. Mas ele não reclama, se lamenta, ou sequer questiona. Apenas constata.

E o filme se encontra tão perdido nessa espiral, sua narrativa é tão condizente ao capitalismo, que não há espaço para nada extraordinário. Mas se não existe mancha, o suspense hitchcockiano nos ensina, não existe filme. É preciso, então, produzi-la.


A MANCHA

O cinema hitchcockiano se agencia assim: tudo anda normalmente, na média, mesmo na mediocridade e na insensibilidade gerais, até que alguém percebe que um elemento do conjunto, por um comportamento inexplicável, produz uma mancha. [...] É sempre em torno dessa mancha que se organizam os efeitos de mise en scène mais especificamente hitchcockianos.
— PASCAL BONITZER

A trama de O Homem Que Copiava pode ser resumida de maneira simples: um jovem se apaixona por sua vizinha após passar dias a espionando com um binóculo. Todo o resto é subtexto, são camadas que se revelam, elementos que são jogados na mesma espiral que levaram James Stewart à perdição. Como dizia David Lynch, observe alguém tempo o suficiente, e perceberá algo de estranho.

No caso de André, ele parece realizar essa busca pela mancha, mas de modo quase inconsciente. Perdido no ato escopofílico, o jovem começa a reinterpretar o cotidiano seja por meio do olhar ou, similar ao filme de Guerín, pelos desenhos. Em uma sequência animada (que remete às séries da MTV da época), Furtado dá vida a personagens criados por André a partir de experiências na escola. Não se trata de um mundo fantástico, mas de uma estilização baseada justamente em elementos reais. De modo semelhante, mesmo as ações de André no mundo real vem junto a interpretações: acostumado a ver e desenhar, André, aspirante a artista, não mais vive, mas analisa constantemente tudo que vê e tudo que faz. O que gera cenas como a do ônibus, onde ele não apenas segue Sílvia, mas esquematiza o ato usando como base algum filme que viu sobre seguir alguém.

Tudo que acontece a André, portanto, parece passar pelo filtro da repetição. Como desenhista, ele apenas reorganiza as coisas. Como escritor, ele apenas as descreve. As manchas, se existem, são tão diluídas que nem podem ser percebidas. Mas se expandirmos o exercício, e considerarmos André também diretor do próprio filme, podemos chegar ao problema de pesquisa.

Entre o aluguel, a inflação do supermercado e o salário miserável, André tem o dinheiro contado. Limitação incomum para o protagonista hollywoodiano, que geralmente se apoia mais em um contraste shakespereano de classes do que propriamente em seus efeitos práticos. A limitação é tanta que, mesmo quando decide romper a barreira do contracampo e se aproximar de Sílvia, André esbarra mais uma vez na parede ilusória, mas inexorável do capitalismo: vendedora em uma loja chamada Sílvia, Sílvia atende André com sua desculpa de comprar um presente para a mãe. O valor lhe é assustador: 38 reais por um chambre (lembremos que o filme já tem duas décadas) - que o próprio não deve fazer ideia sequer do que significa.

O que Furtado estabelece ao longo da primeira parte do filme é simples: entre o aluguel, a inflação do supermercado, o salário miserável, a rotina sem prazeres, a escopofilia e o preço do chambre, André precisa de dinheiro.

Eis a mancha.


UM FILME CONTEMPORÂNEO

O dilema do contemporâneo é algo que pode ser debatido desde que os Lumière filmaram os trabalhadores deixando a fábrica. Como filmar o agora, tendo em vista os aspectos culturais, sociais, comportamentais, econômicos, políticos? O que é o agora, essa noção elusiva que temos na cabeça, mas que não se concretiza da mesma forma para duas pessoas?

Muitos filmes ao redor da virada do milênio, que Furtado muito provavelmente assistiu, trataram da chegada da pós-modernidade por meio da crise imagética. Uma série em específico chama atenção, por ser não apenas sobre isso, mas por ter o fantasma hitchcockiano impregnado em sua essência: a sequência de A Síndrome de Stendhal (1996), De Olhos Bem Fechados (1999), Cidade dos Sonhos (2001) e Femme Fatale (2002) delega ao onírico a reinterpretação de um mundo de percepções em crise. Cada cineasta ilustra isso a seu modo: enquanto Argento usa efeitos de computador para invadir pinturas, Kubrick filma Tom Cruise caminhando nas ruas de Nova York como um mero mortal.

Mas não consigo lembrar de algum filme que o tenha feito por meio de algo tão ínfimo como uma nova fotocopiadora que chega a uma pequena gráfica de Porto Alegre. Máquina criada para copiar imagens, que não permite a criação mais do que sua reprodução. Nas mãos do cineasta certo, uma caixa de pandora.

As capacidades do novo brinquedo, como explica André, o permitem um devaneio: seria possível copiar dinheiro? Horas a finco, ele descobre que sim, mas não basta ao esquema do filme produzir a mancha (imprimir dinheiro), é preciso erradicá-la (tornar a impressão perfeita).

André enfim sucede na empreitada, e consegue enganar o novo namorado de sua colega de trabalho. Ou melhor, a interação entre os dois é de interesse ímpar para a genealogia e artesanato de O Homem Que Copiava. Cardoso (interpretado por Pedro Cardoso) se apresenta como alguém no ramo de antiguidades, mas André logo descobre, ao visitá-lo no emprego, que este trabalha de fato com quinquilharias. É interessante inclusive perceber o cuidado com seus respectivos habitats: enquanto a gráfica tem uma concepção asséptica, impessoal, de um local destinado apenas para cópias e impressões, a loja de Cardoso é abarrotada, escura e apertada, um gabinete de curiosidades de valor expirado, não muito diferente do quarto de André com suas pilhas de desenhos e ilustrações.

A partir desta semelhança é possível entender a afinidade que se cria entre os dois, que logo é evidenciada pelo esquema do filme. Com muita lábia, Cardoso consegue vender uma caixa a André por 50 reais, as quais André paga com dinheiro copiado. Vemos, portanto, um enganador enganando outro, pois a caixa é apenas uma bugiganga que custa um quinto do preço dito. Ambos enganadores, ambos homens que atribuem valor à coisas sem valor, sejam elas caixas de madeira ou folhas de papel.

Familiarizados por suas mentiras, logo a nova dupla esbarra em dois problemas na impressão do dinheiro: um, o aspecto físico, ao qual Furtado se mostra atento: trocar dinheiro, em um filme sobre o capitalismo, jamais poderia ser uma tarefa fácil. Na cena capital, onde vai testar a validade da farsa, André troca repetidamente as notas na mão, delegando seu destino ao acaso.

O outro, o aspecto matemático, que conversa e se situa onde deságua o restante do filme: não vai ser imprimindo dinheiro que os dois vão ficar ricos. A mancha não é capaz de romper com o capitalismo.

É preciso então recorrer ao crime, uma mancha mais tradicional no cinema norte-americano (e, neste caso, também brasileiro). Mas se é aqui que o filme poderia descambar e perder sua graciosidade, é justamente quando Furtado assimila outro elemento, central e indispensável em um filme que é sobre o que O Homem Que Copiava é.


UM TOQUE DIVINO

Mais de uma vez, quando caminha pela rua, André olha para a imagem de uma estátua religiosa que, de cima, oferece uma relação de julgamento divino, impressa no plongé. Sem falar em nenhum momento, ao longo do filme, sobre a religião de seus personagens, Furtado imprime a estátua como um símbolo guia, não necessariamente daqueles jovens (que um tempo atrás eram associados ao rompimento com as doutrinas religiosas), mas de sua moral em uma Porto Alegre refém de instituições superiores aos homens. O aspecto religioso é comum, também, aos protagonistas hitchcockianos, mas em uma espécie de conservadorismo, de dever. Para o brasileiro, sabemos, é algo mais de sobrevivência e conformação.

É sob a benção da estátua que André e Sílvia selam seu relacionamento: após conversarem por meio de códigos dentro do dispositivo comum do filme (em contraplano, André espiona Sílvia, que escreve para ele em um cartaz e pede uma resposta por meio do piscar da luz), os dois correm na rua e se abraçam, em uma cena que, em Hollywood, seria filmada em primeiro plano, possivelmente com o giro tradicional da câmera em volta de ambos. Mas a felicidade, em um filme como esse, é menos grandiosa e eloquente.

Mas esta é a catarse, voltemos a sua concepção, quando André pede dinheiro emprestado a Cardoso para comprar o tal do chambre para a mãe (que não está de aniversário), e este o convence a comprar um santo.

A cena representa o ponto de virada: é após ela que a sorte de André parece mudar. O ato extraordinário, portanto, não é o assalto, nem o encontro, mas o acaso. Em um golpe de sorte, após a realização bem sucedida do assalto, André vence a loteria com uma combinação absurda de números. O rico ficando mais rico? Ou quem sabe: o aspecto desigual da religião?


UM AMOR PARA COPIAR

Antes de seguirmos com Hitchcock, e mais especificamente, Vertigo (1958), devemos fazer uma pequena parada, em outro filme da virada do milênio que parece ser emulado por Furtado.

Em Clube da Luta (1999), o protagonista interpretado por Edward Norton passa os dias enfastiado com a vida moderna, até que seu apartamento explode por um vazamento de gás. No filme de Furtado, André, a nova namorada, e o casal de amigos decidem pôr um fim ao pai de Sílvia fazendo a mesma coisa, exceto por um simples detalhe. A galinha, que tira qualquer atenção do acidente, em um mundo onde a morte de mais outro trabalhador é menos interessante que uma idiossincrasia em um acidente doméstico.

Mas quando falamos de Clube da Luta, falamos dos duplos hitchcockianos personificados pelas instabilidades psicológicas e identitárias da pós-modernidade. A máquina de copiar, no filme de David Fincher, é a própria mente do protagonista (que é filmado operando uma fotocopiadora ao som de uma trilha semelhante à ouvida no filme de Furtado), que quadro a quadro aperfeiçoa a própria imagem, não muito diferente do que André faz com o dinheiro. Em O Homem Que Copiava vemos muitos duplos: as notas de dinheiro, as duas Sílvias, os desenhos de André, o santinho e a estátua, as duas loterias. Mas nenhum desestabiliza tanto o filme como a duplicação de sua patologia.

Inicialmente, o ato de observar pode ser diretamente ligado a Janela Indiscreta, mas ao descobrirmos que Sílvia sabia das espiadas de André, ele não é mais o observador seguro, e sim ela, o que joga o filme direto na direção de Vertigo. O quarto de André, inclusive, lembra o de Gavin Elster, abarrotado de imagens e com um tom avermelhado. André, portanto, é uma amálgama de personagens: é o Maquiavel e o Príncipe, é o Hitchcock fazendo storyboards, e o James Stewart com medo de alturas (um toque sútil, mas brilhantemente amarrado na cena de assassinato de seu amigo, por si a cópia de um filme visto na televisão).

Mas sua Madeleine/Judy não é, como a protagonista de Hitchcock, a ele uma serva - e aqui, me chama a atenção as roupas usadas pela jovem, entre elas um vermelho e um verde associados diretamente à personagem duplicada de Kim Novak. Ao final do filme, a narração se inverte e descobrimos que Sílvia não apenas sabia do hábito de André, mas havia se apaixonado por ele ao descobrir estar sendo observada. Seus encontros, portanto, não são mais por acaso, e sim uma combinação das obsessões e interesses de ambos. A de André, do artista, de conhecer sua Eurídice (a cena do ônibus se torna ainda mais interessante quando vista por essa ótica). A de Sílvia, da musa, de se casar com Pigmalião, este capaz de copiá-la, e a dar uma nova vida.

A relação dos dois parte do contracampo, para a proximidade, para o toque. Na mais bela cena do filme, André e Sílvia caminham por e sentam-se no porto de Porto Alegre. Um não-cartão postal, marcado pela urbanização opressiva desta parte da cidade, que torna o descampado inóspito e não romântico. Tal qual em um filme de Aki Kaurismaki, é ali que, por fim, se apaixonam.

E é na eliminação do acaso do encontro que o filme volta a se aproximar da religião. Ao final, sob a narração de Sílvia, vemos o quarteto subindo os últimos degraus do Corcovado, cercados pelo sonho e pela idealização. Voltamos então à uma cena mais cedo no filme, quando André comenta como Sílvia admira recorrentemente uma foto colada na janela, sugerindo que poderia ser um cartão postal. Se trata, descobrimos, exatamente disso, de um cartão postal do Rio de Janeiro, onde sua mãe teria um ex-namorado que desconfiava ser o verdadeiro pai da guria - que, quando a vê, comenta sobre sua semelhança com a mãe. Estabelecem-se aqui duas redes de olhares: a da cena do começo do filme, onde ambos os protagonistas olham para suas idealizações (André para Sílvia, Sílvia para o cartão postal, posicionado justamente entre os dois); e da cena final, quando o ex-namorado da mãe olha para Sílvia e enxerga um fantasma do passado.

Trata-se de Vertigo no cenário de An Affair to Remember (1957), o maior dos romances. Que, por sua vez, é uma cópia de outro filme do mesmo diretor, Love Affair (1939), uma versão mais pura e religiosa, que se torna então outra mais auto-consciente e espiritual. Em ambos os filmes, os protagonistas vivem um amor impossível e decidem se encontrar no topo do Empire State Building, símbolo estadunidense de sonhos e realizações. Mas estamos no Brasil, mais precisamente em Porto Alegre, e o sonho é outro.

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