Crítica | Suplício de Uma Alma (1956)
À altura de gravar Suplício de Uma Alma (1956), Fritz Lang já estava a duas décadas nos Estados Unidos após seu exílio auto-imposto da Alemanha Nazista. Se todo filme, como dizia Éric Rohmer, é também um documento de sua época, a carreira de Fritz Lang é uma documentação de sua própria adaptação aos meios e aos modos de um país profundamente diferente - e no que tange a guerra, antagônico - do seu.
Creditado por trazer as sombras que viriam por se desenvolver no cinema noir, Lang passou por um processo de dissipá-las cada vez mais, até que seu estilo não apenas impregnou o modo hollywoodiano de fazer cinema, mas os mundos que filmava se confundiam com a própria experiência norte-americana do pós-guerra. Talvez o processo de adaptação tenha resultado em uma fusão ou, como acredito, em uma descoberta: a partir de suas trevas, Lang descobriu as de um país que se protegeu do horror com uma redoma, permitindo pequenas brechas apenas quando convenientes.
Mas as trevas, como parecia acreditar Lang, vinham não de influência externa, mas do próprio Homem, em sua passagem pelo tempo e pelo mundo. Viver, para Lang, é aglomerar perdas, dores e ressentimentos, e o que balança a linha do destino é como lidamos quando estes entram em combustão.
Eis que Lang chega a este filme após filmar as trevas resultantes de paixões proibidas, instituições corrompidas e casamentos falidos - os opostos mais potentes ao modo de vida ideal que, com a chegada da TV, se tornou onipresente nos lares estadunidenses. Chega a este filme após corromper as crenças basilares de um país que diz prezar pela justiça (Fúria, 1936), liberdade (Vive-se Uma Só Vez, 1937), integridade (Retrato de Mulher, 1944), chega após romper os modos do romance, do mistério e do faroeste.
Só restava, a Suplício de Uma Alma, seu último filme norte-americano, filmar a ruína do sistema judicial, a partir do adultério e por meio do ato de modificar a história. Estaria Lang, com este filme, prevendo o futuro?
O SILÊNCIO NO CAMPO
Com apenas 80 minutos e feito em meio a crise que levaria ao fim a RKO Pictures, é talvez o filme mais econômico de Lang, e também por isso talvez o mais langiano de todos. Na trama, Dana Andrews interpreta um jornalista que é convencido pelo sogro a se auto-incriminar por um assassinato que não cometeu, para que possam provar a incapacidade do sistema jurídico e evoluir na abolição da pena de morte nos Estados Unidos.
A economia, advinda também de uma limitação orçamentária, vinha se tornando cada vez mais característica de Lang, ainda mais quando comparado à contemporâneos como Alfred Hitchcock (que curiosamente neste mesmo ano lançou um de seus filmes mais minimalistas em O Homem Errado) ou mesmo Otto Preminger (que um ano antes passeou a câmera tal qual um Fincher rudimentar em obsessão esquizofrênica pelo protagonista de Frank Sinatra). Se o primeiro mirava em direção a seus gestos com cortes, enquadramentos e movimentos de câmera barrocos, e o segundo diluía seus gestos em cenas marcadas pela complexa conversa entre atores e câmera, Lang constantemente deixava a cena acontecer, tornando cada vez mais a gestualidade e as manchas partes da mise-en-scène. Se Hitchcock representa os sons estridentes de uma orquestra, e Preminger o intrincado e intenso som do Jazz, Lang é silêncio.
O processo, afinal, foi de dissipação. Primeiro dos motes visuais do expressionismo, suas sombras e seus ângulos, e então da dimensão expressiva da própria encenação (é só comparar as danças e caras de Metrópolis e o linchamento em Fúria com a compostura dos atores dos filmes tardios). Suas cenas se tornaram cada vez mais “simplificadas”, compondo algumas poucas pessoas, e as próprias atuações acompanharam essa economia visual.
Pois se em todos os seus filmes dos anos 50 é possível perceber uma redução cada vez maior do barulho imagético, uma confluência que transforma os gestos em parte natural da mise-en-scene e não em digressões hitchcockianas, nenhum filme seu parece mais atento ao silêncio que descreve Serguine como este. Filme extremamente prático e manual, que se constrói em torno da dupla de protagonistas fabricando um crime, indo nos locais e plantando evidências, sem qualquer desvio de caráter ou obstáculo narrativo evidente. A tensão reside justamente na fruição do plano, com qualquer dúvida e sugestão delegadas à procura incessante por manchas por parte do espectador acostumado com elas.
Lang já havia filmado uma espécie de pré-Rashomon com Retrato de Mulher, mas naquele filme ainda vemos as pegadas e as trilhas de carro acompanhadas de uma trilha sonora dissonante, a corporificação de uma mulher idealizada pelo reflexo, apontamentos afiados que desviam o filme de uma conclusão “feliz”. Manchas evidentes no caminho, que embora não enfatize tanto como Hitchcock, Lang espalhava como pistas igualmente prazerosas de um quebra-cabeça que assistimos enquanto sendo desvendado.
Neste, nada sugere que o vilão não seja justamente o sistema judicial e, se qualquer dúvida, esta fica delegada não à possíveis brechas na índole dos protagonistas, mas às nossas próprias suspeitas. A repetição das bricolagens e das fotos nos leva à espera de que alguma malícia se revele no sogro: talvez ele finja guardar uma foto, talvez finja tirar uma foto, mas o próprio responde ao apresentá-la ao genro (e a nós).
O SILÊNCIO DO EXTRACAMPO
Em The Big Heat (1953), um de seus últimos grandes sucessos, Lang já havia experimentado com o poder da elipse. Naquele filme, não é um acontecimento, mas suas consequências que são engolidas pelo impiedoso espaço de tempo permitido pela montagem narrativa.
De modo mais extremo, Suplício de uma Alma também se apoia no que não vemos, mas delega até mesmo o balanço de núcleos, tão caro à Lang, para o extracampo. É possível ver o noivado ruir sem que vejamos muito da relação de Joan Fontaine com Dana Andrews. Lang me parecia cada vez mais próximo de poder romper também com as barreiras do pudor, e neste filme mostra que possuía um olhar sensível e afiado para a sensualidade: no início do filme, quando se beijam os dois, a aproximação dos corpos é feita sem distrações da câmera. O que contrasta com sua interação final, quando Lang finalmente os aproxima por meio de contraplanos, e Fontaine parece regressar no tempo e se entregar a uma performance mais carregada - quase o oposto da reação silenciosa de Andrews ao receber sua sentença. O resultado dessa soma, que até então era uma síntese, se dá também no extracampo, em uma elipse onde o destino do noivo é decidido pelas mãos da noiva.
No fim, as trevas são reveladas no homem e pelo homem, por um pequeno deslize, uma mancha imperceptível em um filme tingido quase que pela abstração do banal - por mais afetado que este seja, o filme é literalmente o dia a dia da fabricação do crime. O mais genial, porém, talvez esteja em como Lang mostra as trevas no homem por meio da incapacidade do sistema em desvendá-lo: fosse Andrews condenado pelo crime que fabricou, jamais seria pelo crime que cometeu. E após filmar tantas mulheres trágicas, é mais do que apropriado que seja na expressividade do rosto de Fontaine, e não na racionalidade imperceptível de Andrews, que o filme se resolva. O ato da pena de morte, para Lang, não é uma questão racional, pois esta só leva a uma espiral sem fim.
Me pergunto o que Lang faria sem limites de orçamento nesse momento da carreira, já alçado ao nível do que podemos chamar de mestre, e embora a ideia de um épico seu que esmiuçasse os silêncios ao limite seja tentadora e, por conta disso, desesperadora (pois este filme não existe), prefiro pensar seu cinema (que existe) a partir da epifania que acometeu Serguine ao ver Alma em Pânico (1952), de Preminger:
Reservado no que considera uma obra prima cinematográfica, me permito emprestar seu pensamento para concluir este texto: a partir da tensão entre uma mulher e um homem, ou ainda, em uma mulher por causa de um homem, pudemos ver, durante um frágil segundo, nos olhos de Joan Fontaine, a alma de Dana Andrews. O suplício que atravessa a tela, troca de corpos, e se instá-la, por fim, na alma de uma obra prima.