Crítica | By The Stream

IMERSO NO MUNDO AO REDOR

Hong Sang-soo conjura temas recentes para fazer um de seus filmes mais sensíveis


Acompanhar um cineasta como Hong Sang-soo é o mais próximo que o cinéfilo contemporâneo tem de experienciar uma época distinta. Não falo, nesse momento, dos filmes de Hong (sempre importante lembrar que na Coreia o sobrenome vem antes, e como chamamos diretores pelos sobrenomes, Hong), talvez entre os mais contemporâneos dos feitos hoje no mundo, mas sim de sua constante produção que remete aos diretores dos anos 30 e 40.

Desde 2020 já foram nove longas, mais do que Scorsese, Tarantino, Nolan, Villeneuve e Fincher, cinco dos nomes mais poderosos de Hollywood, somados (fizeram, juntos, seis filmes no período). Presença constante em festivais e premiações alternativas e com uma crescente popularidade no meio cinéfilo, Hong parece estar expandindo os horizontes de sua influência para outros realizadores. Pois embora trabalhem em e com Hollywood, Yorgos Lanthimos e Luca Guadagnino ambos lançaram dois filmes em 2024, ao passo que Shyamalan lançou filmes em anos consecutivos pela primeira vez desde 2000.

Se uma coisa tem a ver com a outra, fica a cargo de especulação, mas me parece um sinal positivo ver cineastas desenvolverem suas carreiras com filmes, e não com longos projetos megalomaníacos que tratam cinema como obras arquitetônicas que remetem à obsessão de faraós e imperadores de épocas extintas.


MUNDO QUE SE REVELA

À Hong, não interessam os receptáculos. Se todos os diretores mencionados acima fantasiam com épocas que não existem (seja pelo tempo, ou pela realidade), Hong se encarrega de filmar o mundo que se apresenta ao seu redor. Seus personagens habitam o mundo que a câmera aponta, e se este se transforma ao longo de seus filmes não é por qualquer alteração cênica, mas sim por conta dessa possibilidade sobrenatural da câmera de evocar um mundo semelhante ao nosso, mas cujas propriedades internas o tornam diferente.

Cada vez mais associo essa característica tão cara a Hong, que ele parece investigar filme após filme, ao cinema de Fritz Lang, e como o próprio fazia um caminho semelhante mesmo que realizado a partir de seus ideais expressionistas. Conforme foi se adaptando aos meios hollywoodianos, Lang cada vez mais dissipava as sombras e as representações visuais na mise-en-scène, se aproximando de filmar cenas de um cotidiano onde o gesto é se não um pontinho no canto, ao mesmo tempo que um catalizador de todas as mudanças que surgem a partir dele.

Já em Hong, a interpretação é tão livre e o mundo tão irrestrito que o gesto se torna banal. Seus atores não parecem ter qualquer limitação, não parecem seguir qualquer diretriz, seja ela espacial ou dramática. E se isso não era tão bem realizado nos primeiros filmes, onde ainda havia uma certa dissonância, uma certa inquietude em emular essa naturalidade, mais e mais os filmes de Hong caminham para algo que considero análogo ao impressionismo.

Em In Water (2023), vemos seu experimento mais radical nesse sentido. Nele, um protagonista está tentando fazer um filme sobre fantasmas, até que realidade e ficção (tanto do personagem com seu filme, como de Hong com o personagem) começam a se misturar. Hong comunica isso reduzindo o foco da câmera durante todo o filme, transformando seus atores em figuras borradas em paisagens ao mesmo tempo estagnadas e em constante movimento. O filme sobre fantasmas, interpretado por fantasmas.

E talvez seja possível dizer que By The Stream (2024) é seu sucessor espiritual, ao mostrar um diretor desta vez de teatro, que em uma cena central se junta as pessoas ao seu redor em uma conversa na rua a noite, e todos se tornam borrões de cores quentes cujas feições se mostram indiscerníveis. Dando sequência também ao mote do protagonista reproduzindo o diretor por trás do filme, o vemos ensaiando com as alunas o que parece ser um ritual doméstico, mas que relembra uma sessão espírita, filmada com um distanciamento que beira o Mizoguchi.

É talvez seu filme que mais flerta com uma iconografia clássica do horror: pessoas imergindo nas sombras da noite, e atrizes imergindo nas sombras do palco, enquanto observamos com um distanciamento que sugere que algo deve ocorrer. Quando o diretor conta uma história de seu passado, a impressão é que logo uma revelação mostrará também um desnível em seu caráter, uma mancha no passado que torna o presente não mais uma conversa confortável.

Mas Hong, como de costume, não atravessa essas barreiras. Seus filmes existem em um limiar, em um limbo entre o banal e o extraordinário, geralmente acessíveis apenas em pequenos portais de conversão. Sempre sob uma superfície, que ele a cada novo filme parece provocar desníveis que desafiam a cosmologia estruturada.

Mas talvez o grande diferencial é que By The Stream, seu filme mais longo em anos, não se reduz também a seu experimento (o que, em In Water, é um ponto positivo). É curioso porque, mesmo com dois filmes a serem lançados em 2024, se criou uma maior expectativa para este do que para o estrelado por Isabelle Huppert, a outra musa de Hong. E talvez seja o momento de analisar como seus filmes se constroem em torno das duas: o de Huppert, sobre uma turista e a força disruptiva do embate cultural, e também a impossibilidade de se fazer impressionismo estando na coreia do sul. O de Kim Min-hee, como as últimas de suas colaborações, é sobre passar por cima da questão da cultura, e entrar em contato direto com o mundo e com sua matéria.

Por isso na cena final, onde pessoas conversam ao lado do riacho, ouvimos de maneira impossível de se ignorar o barulho da água. No fim, era apenas óbvio que Kim caminharia pelas águas, tateando seu caminho, em busca de algo que ela nem sabe o que é. Ou em busca de nada, porque embora haja inquietação em sua figura, a Kim que Hong pinta busca algo muito diferente de Huppert: uma quer a tradução, a outra quer a sensação.

E, complementando uma possível trilogia (embora ache que este terceiro capítulo ainda não tenha sido gravado), se O Filme da Novelista (2022) termina com uma gravação em cores do rosto de Kim, este termina com uma foto sua, um registro da efemeridade da mulher que transformou sua vida e, agora, seus filmes. Se In Water, portanto, é um filme sobre o mínimo necessário, sobre desaparecer em um mundo inteligível, By The Stream é sobre somar camadas e existir junto a esse mundo. Se um reduz seus personagens, outro os potencializa. Se um procura a dissipação, outro encontra o registro.

8.5

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