Crítica | Paixão (2012)

ROMPENDO COM A IMAGEM

Em filme pouco incompreendido, De Palma propõe conversa anacrônica entre passado e presente, real e falso, mundo e imagem


A fase crepuscular da carreira de Brian De Palma oferece reflexões importantes sobre o atual estado do cinema estadunidense.

A fim de delimitá-la, diria que esta fase se inicia com a ida de De Palma à Europa, com Femme Fatale (2002), e se estende até hoje, duas décadas depois, onde o cineasta conseguiu fazer apenas outros quatro filmes - e se fica difícil traçar qualquer progressão no método depalmiano com filmes tão espaçados, isso também faz parte do problema. Por outro lado, seu contemporâneo de Nova Hollywood, Martin Scorsese, parece desfrutar de uma liberdade pouco antes vista no sistema de estúdios, financiando projetos passionais com orçamentos de blockbuster, e encabeçando ele próprio uma espécie de lado do cinema contra o monopólio Disney.

Enquanto De Palma filma aqui e ali e parece ter se tornado uma lenda mais do que um artista ainda vivo e disposto, Scorsese é tratado como uma entidade de poder quase ilimitado, uma cujo sucesso dos filmes independe para o financiamento do próximo.

As diferenças entre ambos, como cineastas, são muitas, mas me interessa pensá-las a partir da iconoclastia. Ambos surgidos na primeira leva de diretores cinéfilos dos Estados Unidos, fica evidente ao longo de suas respectivas carreiras as referências aos filmes que os fizeram. Porém, se De Palma é associado ao maneirismo, se apoiando em ideias artísticos mas assimilando as revoluções sociais e tecnológicas como modo de romper com o clássico - ou, na melhor das hipóteses, avançar sobre ele -, Scorsese cada vez mais me parece um academicista, assumindo a pose de um defensor do clássico mas que não hesita em realizar concessões e se adaptar ao sistema ao redor. Não que o ato de se adaptar seja errado, mas enquanto De Palma seguiu sendo o artista provocador de Vestida Para Matar (1980), Scorsese se tornou uma aposta muito mais segura, que até filma assuntos polêmicos, mas sempre a parte de técnicas e não ideias.

E essas concessões trouxeram frutos, porque só assim para um filme inchado e grotesco como O Lobo De Wall Street (2013) ser considerado um jovem clássico, e este Paixão de De Palma ser considerado uma decepção. O primeiro surfou nas ondas do politicamente incorreto, se adequando aos novos tempos ao tentar parecer inadequado. Enquanto o segundo se encarregou de interpretar os novos tempos, sem nunca se preocupar em adequação.

Outros dois filmes que podem ser usados nesta comparação são A Dália Negra (2006), de De Palma, e Ilha do Medo (2010), de Scorsese. Ambos suspenses/noir trajados de filmes de época, fica evidente como De Palma filma o mundo a partir das possibilidades do cinema, enquanto Scorsese filma o mundo com as possibilidades do cinema. Um é transgressor, outro é conservador.


A violação DA IMAGEM

Eis que chegamos, finalmente, ao filme. Estrelado por Rachel McAdams e um elenco de apoio (mais sobre isso na última seção), Paixão me parece ser o cume das experimentações que De Palma vinha fazendo desde Femme Fatale. Se sua sequência de Vertigo (1958) entre os anos 70 e 80 teorizava sobre a propriedade intelectual e identitária da imagem por meio de maquinações do real, e seus filmes entre os anos 80 e 90 exploravam sua relação com o espaço e o mundo filmado à luz da pós-modernidade, a partir do digital De Palma viu uma nova gama de possibilidades que residem em uma nova dimensão.

Difícil não falar da sequência em split-screen, momento onde seu cinema parece derreter em todas as suas possibilidades e teorias, mas também onde ficam evidentes algumas filiações e limitações.

Na filiação, seu irmão maldito em Dario Argento, cineasta tão semelhante e ao mesmo tempo tão distante do mundo depalmiano, um que é profundamente integrado e que pode ser tão quanto explicado pelas regras físicas, por mais levadas ao limite que estas sejam. O esquartejamento, o sangue, a geração da mancha em De Palma não necessariamente transforma e corroi o mundo, mas sim nossa visão manipulada deste. Já em Argento, o ato da violência se prova um meio para o sobrenatural, uma resolução estilística que por vezes rompe com o universo do filme e pervade as dimensões entre o que é filmado, a câmera e o olhar do espectador.

Pensemos, novamente, em filmes próximos e como A Dália Negra traz manchas e mais manchas hitchcockianas em um filme langiano, mas o mundo segue sendo o que é: uma representação do real. Ao passo que em Mãe das Lágrimas (2007) Argento abre os portais do inferno, e o mundo não mais é aquele que conhecemos - ou julgamos conhecer.

A filiação reside, portanto, não em uma corrosão do mundo pelo extraordinário (seja ele sobrenatural, mitológico ou enfim) mas do próprio empoçamento do espaço filmado a partir da construção cênica e da movimentação de câmera, evidenciadas na sequência de tela dupla, onde parecemos ao mesmo tempo estar em uma cena de Tenebre (1982) e outra de Stendhal Syndrome (1996). Em uma, um assassinato em um mundo modernizado e cada vez mais estéril, geométrico. Em outra, uma instalação artística que se confunde com a psique humana. Uma sequência é moderna e de um prazer externo, a outra romântica e de um prazer interno.


AS (DE)LIMITAÇÕES DA IMAGEM

No que tange a limitação, talvez este seja o filme que me fez compreender de vez a síntese espacial de De Palma, anunciada tão cedo como em Irmãs Diabólicas (1972) e evidenciada no plano que passa por cima das paredes em Olhos de Serpente (1988), mas que me parece se explicar aqui e, mais uma vez, se misturar também com a única maneira que De Palma tem de destruir as barreiras da realidade: os recursos narrativos e visuais.

Narrativo, o sonho. Visual, a separação da imagem. Narrativo, a irmã que não existia. Visual, a própria Rachel McAdams.

O que essa mistura permite é vermos o mundo do filme, seus quartos, cômodos, estacionamentos, corredores e salas não apenas pelos planos angulares (que criam uma espécie de expressionismo moderno, onde o pontiagudo está na arquitetura estéril e não gótica), mas como se observássemos tudo “de cima”, como uma casa de bonecas sem teto na qual De Palma controla tudo com linhas invisíveis, como se pegássemos emprestado o olhar fantasmagórico de alguém que enxerga tudo sem nunca estar nesses lugares.

É uma cosmologia à Jacques Tati (cineasta que, com PlayTime (1967), filmou os novos arranjos de um mudo tão cada vez mais automatizado que a automatização começa a se tornar aspecto biológico) comunicada pela fantasmagoria, não com uma suposta perfeição e organização do caos à Jacques Demi (cineasta que, com Duas Garotas Românticas (1968) filmou o charme do acaso como rede de acontecimentos que se desencadeiam a partir de algo intangível), mas como uma distorção da realidade que se apresenta entre nós e a dimensão do filme. Difícil dizer, entre isso e Femme Fatale, seu predecessor natural, o que de fato faz parte (ou mesmo é) a diegese do filme, e é uma pena que De Palma tenha feito apenas A Dália Negra entre estes dois (descontando o documentário fake Guerra Sem Cortes, 2007), pois se precisei quase completar sua filmografia para perceber como seu uso espacial me parece, fica ainda mais complexo e desafiador compreender o papel dos demais elementos nessa tecelagem.

O que, caso não tenha ficado claro, faz parte do prazer em assistir aos dois filmes, como se o mistério de Cidade dos Sonhos (2001) fosse delegado única e exclusivamente às resoluções apresentadas pela mise-en-scène.


Me permito também um desvio bruto no pensamento, e uma esticada curiosa para finalizar este texto.

Em um comentário no Letterboxd, falei sobre como considero Rachel McAdams uma das candidatas a maior atriz norte-americana do século 21 por ser talvez a única que consegue encarnar a experiência multifacetada do país em suas muitas personagens - quase todas um contraponto à Regina George, a vilã de Meninas Malvadas (2004). Pois que aqui ela se torna o que parece ser a versão adulta da personagem que a tornou uma estrela e, mais do que isso, uma cópia de si mesma, trazendo os temas de Vertigo (1958) daquele filme (Lindsay Lohan se torna, afinal, uma cópia de Regina George não por conta da manipulação de um personagem, mas de toda a configuração masculina da sociedade) para este.

Da suposta culpa de quando conta sobre a irmã gêmea, à revelação de que ela não existe, à sua própria corporificação enquanto vela sua cópia morta, De Palma traça a conexão entre Rebeca (1940) e Vertigo a partir de um dispositivo narrativo que se transforma em visual, no momento onde o filme mais parece desafiar nossa compreensão e crença naquele mundo como apenas mais uma representação do real.

E é uma pena que os outros intérpretes estejam tão aquém da magnificência de McAdams neste filme de Brian de Palma, que as outras duas mulheres sejam tão desprovidas do mesmo tesão e malicia que ela traz consigo, que o suposto galã seja um canastrão sem sal e que suas cenas coletivas só funcionem quando a câmera para no único objeto digno do título do filme: o mal e sua reencarnação.

8.3

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