Crítica | Hotel Às Margens do Rio (2018)

deixe o hong morrer

Em filme transitório, Hong Sang-soo se despede da própria carreira para poder recomeçar


O interessante da crítica é o poder que dá ao escritor de se tornar também autor de um filme.

Até boa parte deste Hotel Às Margens do Rio (2018) tive a impressão de estar assistindo personagens habitando uma espécie de limbo. O primeiro plano é de um homem olhando uma mulher pela janela, até que decide sair do quarto e esbarra nela no próprio corredor do hotel onde está hospedado. Mais a frente, descobrimos que este homem é um poeta que acredita estar próximo do fim da vida e, enquanto espera os dois filhos para se despedir, mais uma vez observa a mesma mulher, agora acompanhada da amiga. Ambas caminham à margem do rio, e a brancura da água com o céu provoca um efeito Vidas Secas (1963): a claridade engolindo os arredores, e as tornando como borrões em uma tela branca.

Cada vez mais tenho associado o estilo de Hong ao impressionismo, à essa efemeridade borrada do momento, e este filme me aproximou ainda mais desta hipótese (que talvez In Water confirmaria, anos depois). A imagem das duas também me remeteu ao Japanese Girls at the Harbor (1933), obra prima de Hiroshi Shimizu que talvez seja um dos precursores mais curiosos ao cinema de Hong e que, neste filme, filma a transição entre o mudo e o falado de maneira pungente (inclusive, os pôsteres são praticamente idênticos).

Curioso também uma única imagem ter este efeito. Conhecido justamente por não ser um cineasta pictórico, a beleza em Hong está muito mais na frivolidade e na intensidade dos sentimentos que afloram em sua pletora de gestos do que em artifícios de composição. O próprio plano do rio, com a cidade alinhada ao fundo, me lembrou O Grande Hotel Budapeste (2014), filme de outro diretor influenciado por Ozu e que brinca com um dispositivo narrativo evidenciado.

E isso tudo me reforça a ideia do limbo, ainda mais quando Hotel Às Margens do Rio vem após Hong realizar uma espécie de síntese de sua última fase com Grass (2018), filme que antecede este e que, junto com este, vem antes de um hiato de dois anos sem lançar filmes (para ele, um tempo considerável). Uma espécie de limbo artístico, onde Hong remete tanto ao seu cinema como aponta para possíveis novas direções, simbolizadas pelo hotel, pelos visuais brancos (suas imagens comuns sendo desintegradas com a luz) e pelo próprio estado do protagonista. 

E, talvez de maneira condescendente mas também condizente com o estado melancólico de um homem que anuncia a própria morte, Hong se permite mais momentos marcantes que o normal.

Em uma cena, o poeta conversa com os filhos ao lado de uma janela onde conseguimos ver rio e cidade ao fundo, até que um corte isola os três do plano, enquanto a conversa segue acontecendo. Mas que parece ser um caso raro em sua filmografia de uma cena filmada em dois planos, logo se revela uma elipse: com um movimento de câmera, vemos o poeta olhando para o rio e percebemos que não estamos mais vendo pelo vidro: a barreira que separa quem observa do que é observado, sendo dissolvida em uma espécie de jumpcut invisível, semelhante àquele realizado por Antonioni em The Passenger (1975), filme onde Jack Nicholson interpreta um jornalista que finge a própria morte para poder desaparecer.

Em outra, arrependido consigo mesmo de não ter dado nada para os filhos, os entrega a cada um bicho de pelúcia. Mais importante que isso, os conta orgulhoso a origem de seus nomes e tira uma foto dos dois com as criaturas, em outro raro momento onde Hong busca uma emoção básica. A cena me remeteu a Make Way For Tomorrow (1937), obra prima de Leo McCarey sobre filhos que tem de lidar com o fim da vida dos pais que inspirou, é claro, Era Uma Vez em Tóquio (1953), de Yasujiro Ozu.

Indo além, diria que este é o muitas coisas de Hong, mas principalmente a sua versão da obra prima de Ozu. Um filme que, em seus muitos momentos marcantes, é sobre a natureza de um artista que o faz se afastar de sua família, mas que também faz o possível para buscar uma espécie de conciliação. Quando os filhos encontram o pai no final, e ouvimos seus lamentos com a câmera fixa na porta entreaberta, estamos praticamente em um cômodo vazio de Ozu. O dissolve mais importante do filme vem logo à seguir: quando vamos do rosto morto do pai à imagem das duas mulheres deitadas na cama.

Nesta outra imagem, que se repete muitas vezes, e o simples fato de ser o rosto de Kim que está virado para nós revela não apenas o fim dessa transição proposta nos dois filmes, mas o caminho a se seguir.

8.8

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