Crítica | Grass (2018)
TUDO passa por ELA
Em filme que catalisa suas tendências, Hong Sang-soo aponta para uma mudança de rumo
Com pouco mais de uma hora de duração, Grass me parece ser um filme “importante” na já extensa filmografia de Hong Sang-soo. Após um 2017 com três filmes que, incluindo o seminal Na Praia À Noite Sozinha, parecem ser coletivamente uma espécie de cume para os temas que vinha trabalhando nos anos 2010, Hong faz com este e com Hotel Às Margens do Rio a sinalização de uma mudança de rumo na carreira - que entrou em hiato em 2019 (para ele, um ano já é hiato) e retornou com ideias renovadas em 2020.
Se em um nível mais superficial e aparente seus filmes são sobre “o mínimo necessário para se fazer um filme”, para os catequizados a diversão está em acompanhar as digressões e dispositivos narrativos, e como estes transformam a percepção sobre os acontecimentos filmados. Pode ser uma mesma história com dois protagonistas diferentes (Oki’s Movie, 2010); um único protagonista com diferentes versões da mesma história (Hill of Freedom, 2014); ou um mesmo filme apresentado duas vezes, mas com pequenas diferenças em cada versão (Certo Agora, Errado Antes, 2015).
Na maioria destes, o dispositivo se revela de alguma forma, por vezes materializado como produto da mente de um dos personagens. É o caso de In Another Country (2013), onde acompanhamos três versões diferentes da ida de uma turista francesa à uma pequena cidade da Coreia do Sul. Naquele filme, os acontecimentos narrativos são alternados com as cenas de uma escritora, com o filme propondo uma conversa metalinguística que inclui a própria escritora como personagem ativa.
A questão é que em boa parte desses filmes o dispositivo altera a experiência da narrativa, mas nunca se mistura com ela no que tange o material do filme. Em Oki’s Movie vemos quatro sequências de créditos, em Certo Agora, Errado Antes as duas versões se sucedem mas não se misturam, e no filme estrelado por Isabelle Huppert há, como já dito, uma alternância de cenas e planos.
Já Grass trata de simplificar este processo à dimensão da cena: em um café/restaurante, o cenário mais comum de qualquer filme hongiano, vemos pessoas conversando sobre os mais diversos assuntos. De levemente diferente está a limpidez da imagem digital, reforçada pelo belo preto e branco e uma câmera que vai e volta, isolando um casal que conversa sobre uma amiga morta.
Estas cenas são alternadas com outras de Kim Min-hee, musa e atual companheira do diretor, escrevendo algo sobre as conversas em seu laptop, e narrando em off comentários acerca do que as pessoas dizem. Não fica claro, em um primeiro momento, se ela ouve as conversas ou, por conhecimento prévio em relação a Hong Sang-soo, ela os escreve.
A questão se encontra, portanto, no movimento de câmera que a revela em um canto do café enquanto as pessoas conversam, o que não necessariamente exclui a possibilidade dela própria ser a autora dos diálogos, mas a materializa como um elemento de cena (devidamente fantasmagórico, delegado ao canto do espaço.
Nesse sentido, Grass talvez seja a culminação dos experimentos que Hong vinha fazendo nos últimos anos, tudo isso em um único movimento de câmera que une narrativa, dispositivo e a própria dimensão real que se revelou tão potente ao descobrimento do caso entre diretor e atriz.
Essa sensação de união de vertentes se reforça na cena final, onde todos os “personagens” se cruzam na entrada do bar. Se em seus filmes pré 2018 vinha cada vez mais percebendo uma certa afinidade com Fritz Lang, uma certa assimilação macmahonista da gestualidade como elemento totalizante da mise-en-scène (em Lang, há todo um processo de tornar o gesto algo cada vez mais natural e plano em meio ao naturalismo dramático de Hollywood; em Hong, o gesto é tão natural que ele se torna a própria matéria fílmica, se dissolvendo no todo da cena), em Grass a impressão é que Hong se conecta a um cineasta como Otto Preminger, filmando esse caminho interminável da solidão e da melancolia em movimentos de câmera que centrifugam tudo ao seu redor.
De todos os filmes, talvez mais Anatomia de Um Crime (1959) quando penso em como Preminger adaptou o próprio método para um filme de planos mais próximos. Mas pensando bem, Kim parece cada vez mais se assemelhar às trágicas heroínas que Preminger balançava em suas cenas de modo a sempre delega-las aos cantos. Mesmo que, na maioria das vezes, o próprio movimento se desse em torno de suas belas e enigmáticas figuras.