Crítica | Bonjour Tristesse

UMA REFLEXÃO SOBRE A BELEZA

Obra prima de Otto Preminger explora limites do cinema como representação da natureza


A importância de ler, absorver e articular.

No pensamento de Hegel, que ainda estou muito longe de poder sequer citar (mas que citarei mesmo assim), Beleza é a manifestação sensual da liberdade, não apenas a aparência ou imitação da liberdade. Como uma extensão disso, ele diz acreditar que a verdadeira beleza só pode ser encontrada na exposição sensível da Ideia nas obras de arte, criadas livremente por humanos para trazer à nossas mentes o que é ser um espírito livre. E, portanto, sem condições para tal, observarei uma espécie de contradição nesse pensamento.

Pois Hegel, morto aproximadamente seis décadas antes da gênese do cinema, descreve que arte traz a verdadeira beleza, mas que a verdadeira beleza não pode ser imitação da liberdade. A partir disso, o cinema como um todo seria uma contradição no que tange a beleza pois, como a arte da imitação do real, poderia o cinema ao mesmo tempo produzir uma obra de arte capaz de nos mostrar a liberdade de espírito, ao passo que segue sendo uma imitação e, portanto, incapaz de produzir verdadeira beleza?

Voltarei a isso nos anos subsequentes, mas gostaria de colocar no centro dessa ideia ainda embrionária a figura de Jean Seberg em dois filmes. Primeiramente, nesta obra devastadora de Otto Preminger, chamada Bonjour Tristesse (1958) e, por óbvio, em Acossado (1960), dois anos depois.


No primeiro filme, uma noção mais clássica de beleza: a paisagem idílica que combina a arquitetura modernista de uma casa aberta à natureza com suas largas portas, janelas e varandas com o mar, as colinas e a areia convidativamente enquadrados ao redor. Uma espécie de canto do mundo privilegiado, onde tudo é perto e acessível o suficiente para que o pretendente da namorada possa visitá-la as escondidas de uma caminhada na praia, mas onde seus próprios protagonistas só adentram em carros de luxo.

A encenação de Preminger, conhecida por sua flutuação sintética do espaço por meio de paralipses, laxes e complexos jogos de sintetização mesmo de planos distintos, aqui parece se render ao cinemascope, em uma espécie de adaptação ao espaço aberto com a qual não estava acostumado. Quando penso em filmes como Laura (1944), Whirlpool (1950) e O Homem do Braço de Ouro (1955), me vem a imagem do preto e branco como unificador dessa síntese, mas também do espaço como uma rede interligada, uma espécie de cosmologia explorada pela movimentação, um funcionar do mundo que é integrado com os movimentos de câmera e de cena. Em Bonjour Tristesse não há a mesma necessidade de se reorganizar, pois a liberdade do espaço permite a seu personagens perambularem e se integrarem aos cenários de modo natural.

O jogo de clacissismo é também abordado no dispositivo do filme, de filmar o presente em um preto e branco rebuscado, e o passado na vivacidade das cores. Não é mais possível, afinal, ser feliz, não quando se sabe que a felicidade e a simplicidade de outrora foi corrompida pela chegada da idade (a personagem de Seberg lamenta não ser jovem ou velha o suficiente para, ou não ter que lidar, ou saber como lidar com a situação que se apresenta). E assim, aquela jovem que teve de crescer em meio a liberdade excessiva, simbolizada tanto no modo como o pai a cria (e este reconhece em mais de um momento) como na já mencionada casa sem barreiras (e pintada à base de cores primárias, de harmonia relevada), agora está presa a ambientes fechados, rodas de pretendentes, banheiros e, por fim, espelhos que a forçam a olhar para dentro de si.

Seberg passa, portanto, por uma transformação. Se pela maior parte do filme ela é um ser livre que mais parece um produto daquele universo onírico, no final descobrimos que ela não passava de sua própria memória, que agora a confronta na derradeira cena onde coloca a maquiagem para disfarçar as imperfeições e a tristeza. Ela vai, portanto, de uma criatura livre à uma tradicional protagonista de Otto Preminger, femme fatale ciente de sua condição e marcada por acontecimentos de seu passado.

O próprio Godard reconheceu que Acossado poderia servir de sequência ao filme de Preminger, especialmente em como a cena final poderia ser um prelúdio para o começo de seu filme, também centrado na beleza de Jean Seberg. Mas, nesse caso, uma beleza simboliza a modernidade: o jump cut na parte de trás de seu pescoço, a ênfase do momento, da sensação, do registro e como este se transforma, então, em efemeridade eternizada.

A própria maneira como Godard filma as ruas de Paris alude para seu caráter vivo, mas faz o oposto da construção de Preminger: o que vemos é uma grande cidade reduzida à seu aspecto físico e mundano, às paredes de um pequeno quarto onde dois amantes conversam, às ruas abarrotadas com o Arco do Triunfo ao fundo. Não somos convidados a admirar Paris, mas à experienciá-la pela reprodução de suas imagens, e é nesta imitação, ao realizar um registro quase documental da cidade, que Godard intervém como autor.

De modo semelhante, por boa parte do filme a personagem de Seberg parece segurar alguma espécie de tristeza sob a superfície de sua estonteante beleza, em um preto e branco muito mais leve que o do filme de Preminger. O rosto é quase o mesmo, se marcado pelos dois anos que se passaram entre os dois filmes, e pela crescente capacidade de Seberg como intérprete, capaz de evocar algo tão específico como a inquietação em uma criatura feita para explorar e viver, e que revela sua verdadeira natureza de desprendimento apenas no final.

É difícil dizer que há coisa mais bela que Seberg nestes dois filmes, ao menos ao que propõe Hegel - ou, ao que me parece que propõe Hegel. Pois se ela em pele e osso não pode ser considerada verdadeiramente bela, sua reprodução em película, sua transformação em uma cópia imagética que hoje chamamos de arte, parece ser a representação perfeita de liberdade.

O que diria Hegel? Não faço a menor ideia, e nem se este pensamento todo fez qualquer sentido. O que sei é que em ambos os filmes Seberg se olha no espelho, e observa o reflexo de uma imagem captada, a terceira dimensão da criatura real, e se em um a sensação é justamente dessa iminente transformação, no outro é da impossibilidade de esconder a tal tristeza que insiste em aparecer a cada nova alvorada. Nem com a máscara (a quarta dimensão?), nem com a volta ao preto e branco (a quinta?). Mas mesmo essa impiedosa e esmagadora tristeza não é capaz de sequer diminuir a irresistível beleza de Jean Seberg, eternizada pela mais jovem e mais complexa das formas de arte.

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