Crítica | Plano Imperfeito (2018)
O AMOR COMO CONVENIÊNCIA
Comédia Romântica faz proeza ao abraçar o gênero enquanto o rejeita
A rotina de quem troca o final de semana pelos dias de semana às vezes embaralha todo o ciclo social. Como alguém que há três anos passa boa parte do ano trabalhando sábado e domingo, às vezes por mais de 20 horas, muitas noites se tornam aquele limbo entre descansar de sábado e pré-descansar por domingo, e a tarefa de fazer isso enquanto se segue o planejamento de filmes a assistir complica ainda mais a mistura.
Na sequência de uma pequena maratona de Otto Preminger, comecei a assistir Anatomia de Um Crime (1959), clássico que por qualquer motivo deixei escapar por anos mesmo tendo tudo que poderia para me atrair. Mas durei apenas alguns poucos minutos, porque o cansaço bateu e vi que os neurônios precisavam de algo leve.
Quem me conhece em uma escala mais pessoal, sabe como abomino a cultura que vem se instalando nos últimos tantos anos do “assistir coisas para desligar o cérebro”. Mais uma parte do projeto de anestesia que, multifacetado e arquitetado por tantas frontes que não caberiam em um texto como este, na maioria esmagadora das vezes é apenas uma muleta para defender o consumo excessivo de produtos (não obras, produtos) feitos por empresas afim de extorquir dinheiro do resultado do objetivo mor do projeto: pessoas cada vez menos capazes de pensar e refletir o mundo, porque tudo chega mastigado e pronto para sentar naquela zona de conforto tão protetora.
Assim, especialistas são trocados por comentaristas, que ao invés de oferecerem anos refinando seus talentos, oferecem uma espécie de carisma da imperfeição: olhe o estado atual do audiovisual (outra palavra que não gosto, e que aqui compreende do jornalismo aos filmes) e verão muitas pessoas que estão lá porque são populares, e que são populares porque refletem a própria incapacidade dos espectadores de articular um pensamento que fuja da própria ignorância. Consumir alguém que sabe muito se tornou um exercício fútil porque, afinal, [insere fulano] fala a nossa língua, a língua dos iletrados.
Pois bem que decidi, neste momento de quase exaustão física e mental, assistir a uma comédia romântica que encontrei na Netflix (emprestada, porque pagar por um streaming hoje não faz sentido, pra mim) e me deparo com Zoey Deutch e Glen Powell vivendo assistentes de dois ricaços em uma espécie de limbo auto-imposto enquanto esperam a grande virada que os devolverá suas vidas de volta. No caso dela, a grande virada seria finalizar um artigo e mostrar para sua chefe, editora de um gigantesco website esportivo. No caso dele, receber uma promoção de seu chefe, empresário do dinheiro (ou o que quer que ele faça).
Conforme assistia o filme, tive uma sensação curiosa de já tê-lo assistido antes, em alguma sessão fantasma do passado e que não foi registrada no Letterboxd ou aqui no Outra Hora, e que foi se misturando também à grata surpresa de assistir um filme feito por uma diretora com ideias e não apenas mais um produto de algoritmo e que, de uma forma ou de outra, se relaciona com o estado da minha própria vida - em uma cena, a protagonista comenta sobre como está sempre tão exausta que não consegue nunca escrever algo com paixão e dedicação. E o filme não faz isso como muleta de relacionabilidade, mas porque desenvolve o drama em sua diegese de maneira própria, conquistando a rara qualidade de ser um filme ingênuo de sua própria existência na era da auto-consciência.
Ou melhor, se isso tudo era intenção da diretora, não sei, mas eis o filme que eu assisti.
Se todo gênero se esgota e então entra em uma fase posterior onde os filmes comentam sobre suas características, me pergunto quando seria o ponto de virada das comédias românticas. Talvez o final dos anos 90, ou sua última leva de sucesso no início dos anos 2010? O que sobra então para o gênero nestes últimos anos onde tudo é tão fabricado e irreal, onde todas as convenções se tornam piadas e estereótipos, onde as relações humanas são reduzidas a aplicativos de encontro e caem em roteiros prontos e reproduzidos aos montes pelas redes sociais. Namorar se tornou se encaixar no padrão, encontrar elementos em comum e fazer tudo o que se espera da ideia social de namoro. Não mais conhecer e descobrir, mas confirmar e completar uma cartilha invisível.
Pois bem que a dupla principal nem sequer se apaixona, nem do jeito que os protagonistas que não se apaixonam, na verdade se apaixonam. Presos demais em suas respectivas rotinas, Harper e Charlie só querem um pouco de tempo livre. Para isso, decidem produzir eles próprios uma comédia romântica, ao fabricar um meet cute para seus chefes e, a partir dali, todo um relacionamento para que, em meio a paixão, os tiranos os deixem mais soltos.
Ou seja, o romance central em Plano Imperfeito é uma farsa… ou melhor, quase todas as relações do filme são uma farsa. O namoro de Charlie é claramente uma reprodução do que disse acima, um jogo de “fazer isso fazer aquilo” desprovido de qualquer sentimento ou mesmo comunicação verdadeira - algo evidente na bizarra cena da janta, onde Powell, um excelente ator, contracena com a modelo sua namorada que parece estar apenas reproduzindo as falas (e, aqui, acho que a falta de qualidade da atriz é um ponto positivo para o filme). Já o encontro de Harper, iniciado online, resulta em uma partida de mini golfe (não golfe de verdade, mas sua reprodução em miniatura) onde ela tem de esconder suas caretas porque imperfeições não são mais aceitas a não ser que venham com um post escrito “é sobre isso e tá tudo bem”.
Voltando aos chefes, é curioso pensar que os dois se casariam sem de fato se conhecerem, e também que praticamente não vemos nada da relação. É tudo no extracampo, até mesmo o primeiro beijo, que é filmado pelo telão do estádio de Baseball. A cena da traição não poderia, portanto, estar no campo, mas sim em uma ligação ouvida por Harper e que nunca é filmada.
E se só isso já seria o suficiente para fazer do filme um comentário interessante do gênero e da situação do amor na era da conectividade, ajuda que a diretora Claire Scanlon tenha uma sensibilidade incomum aos espaços em um filme “desses”. Ao invés do bombardeio de planos de rostos com fundos desfocados e de tomadas b-roll dos lugares, há uma movimentação fluida e integral dos elementos de cena que nunca deixa de ser contemporânea (longe de ser um filme frenético, mas são muitos planos), mas que também não descaracteriza o espaço. Os atores estão de fato em ruas, corredores e salas (embora os restaurantes sofram um pouco) e suas ações nesses espaços importam (planos mais abertos, profundidade maior de foco) ao mesmo tempo que há vida nestes lugares (movimento constante de pessoas e carros). Certamente não é um Companheiros: Quase Uma História de Amor (1999), nem tenta se afiliar a influência documental e introspectiva de Encontros e Desencontros (2003), mas a Nova York do filme é também um personagem, mesmo que profundamente afetada pela pluralidade impessoal da contemporaneidade.
Ecos também de Johnnie To (especialmente na rom-com Don’t Go Breaking My Heart, 2011) em como os rituais artesanais da dupla se revelam (em reflexão pois na hora são tratados quase como banais) os momentos que tecem a narrativa. A começar pelo encontro dos dois, onde Harper mistura as comidas do pedido para agradar os dois chefes (a relação já parte da mentira), passando pelo projeto de ciências que vai dos limões (a eletricidade) a tinta (a arte) e finalmente culminando na pizza que comem juntos - um toque simples, mas devidamente bonito que, se ficassem na festa, teriam comido mais pizza e sem gastar nada, mas teriam perdido um momento que não está disponível na tele-entrega.
É como se Scanlon contrariasse este mundo de estímulos vazios que vivemos com essas escolhas, construindo um filme ao mesmo tempo contrário ao próprio gênero (ao fabricá-lo, de modo que lembra as maquinações de Vertigo) e apaixonado por este (ao sê-lo). Pensando assim, tudo parece se encaixar perfeitamente: os dois fazem os chefes terminarem em um aeroporto (e não se encontrarem) e se declaram não com elogios, mas com críticas. No final, as peças se revelam, e podem os dois recomeçar em busca do que aquela rotina excessiva os impedia: seus respectivos lugares nesse mundo cada vez mais abarrotado e insensível a suas maravilhosas possibilidades.
No fim, o plano foi imperfeito, mas a escolha foi bem recompensada.