Crítica | Só A Mulher Peca (1952)

UM MUNDO CONHECIDO

Obra prima de Fritz Lang articula elementos de seu cinema em impiedosa observação da natureza humana


Não se pode fugir da natureza.

Talvez seja essa a principal constatação ao assistir a este filme de Fritz Lang que, lançado no mesmo ano de O Diabo Feito Mulher, parece ser parte de um momento experimental do diretor, se afastando dos noir e dos filmes de guerra dos anos 30 e 40.

Nele, Barbara Stanwyck interpreta Mae, mulher misteriosa que volta à sua cidade natal após algum percalço mal explicitado e, depois de um breve período morando com o irmão e Marilyn Monroe, aceita se casar com um pescador simples mas apaixonado.

Assistir a evolução da mise-en-scène Langiana é um exercício indispensável para qualquer pessoa que se predisponha a estudar cinema. A mim, ainda faltam muitos dos filmes mudos, mas talvez seja mesmo ideal separar sua carreira em distintas fases, e sua lenta adaptação à Hollywood parece culminar neste ano de 1952, em que faz um faroeste (o terceiro da carreira, para ser justo) e este melodrama, tão enraizado em uma cultura tão específica dos Estados Unidos.

Filme após filme diluindo mais e mais suas tendências expressionistas na mise-en-scène, a ponto de seu estilo se tornar elemento central em duas correntes teóricas fundamentais dos anos 40 e 50 (o noir e o macmahonismo), à medida que Lang foi compreendendo os modos estadunidenses, passou a assimilar elementos da vivência cotidiana e cultural em seus longas e a infundir o american way of life com todas as trevas que trouxe junto consigo em sua fuga da Alemanha. Se em vários filmes esses mundos distintos se encontram (foram quatro só sobre a Segunda Guerra), já nesta fase da carreira parece que o projeto de Lang é revelar que as tais trevas estão em todo lugar.

Pois Lang constroi o filme às bases dos núcleos cotidianos, talvez uma empreitada que possa ser percebida desde O Segredo Atrás da Porta (1947), onde ele para de viajar com seus personagens e os filma em cenários específicos. Naquele filme e em Maldição (1950), casas antigas, enquanto O Diabo Feito Mulher se passa em um rancho e este Só A Mulher Peca em uma pequena cidade pesqueira. O que se assiste então é o mais próximo que Lang esteve de Jacques Tati e de Yasujiro Ozu, e talvez a epítome de sua longa “americanização".


Desníveis no terreno

Talvez a grande diferença entre Hitchcock e Lang possa ser melhor explicada de um ponto de vista teórico. Os mundos que Hitchcock filma, sem exceção, são fabricações representacionais do mundo real, onde aparentemente tudo está bem até que algum acontecimento (que chamo, emprestando o termo de Pascal Bonitzer, de mancha) abala as estruturas e joga seus protagonista sem direção ao desconhecido. Já em Lang, como brevemente esquematizado na seção anterior, as manchas estão enraizadas, veladas na organização espacial e visual das cenas. Se Hitchcock pinta com a escuridão, Lang a filma. Isso pode ser percebido também no tom das interpretações: os atores Hitchcockianos constantemente entoam suas frases em um naturalismo dramatizado; os de Lang por vezes apenas conversam, em diálogos que parecem, tal qual os gestos, se diluírem nas cenas (os gestos, em Hitchcock, são comumente evidenciados por recursos visuais).

Assim, os primeiros quarenta minutos do filme são de aclimação, onde vemos Mae sendo reapresentada aos cenários da cidade, principalmente a casa do irmão, a casa de Jerry, o bar e a sala de projeção onde trabalha Earl, amigo rebelde de Jerry. Diferentemente de Hitchcock, que filmaria um mundo leve e funcional até que este fosse corrompido, a cosmologia de Lang já parte do ponto de que nada nunca está realmente bem, pois embora sejam mais que perceptíveis os pequenos embates e desconfortos causados pelas interações entre tantos personagens, a sensação é justamente de lugar comum. Talvez seja o filme onde Lang mais tem controle de seu elenco, estabelecendo as relações internas entre os núcleos e seus intercâmbios sempre sobre um mesmo rigor.

Já em O Grande Segredo (1946), e novamente aqui, percebo algumas semelhanças entre os modos de Lang e Rossellini de captar as imagens. Em um plano logo no início do filme, Monroe caminha com o noivo enquanto discutem sobre o papel da mulher e do homem no casamento e na sociedade, a câmera os acompanhando de um ângulo levemente diagonal, de modo nada intrusivo ou maniqueísta de modo que o diálogo, ensaiado e encenado, se torna uma captura absurdista deste mundo que parece tão natural, mesmo em suas evidentes dissonâncias. A partir disso, a chegada de Mae talvez seja a ruptura mais ominosa da carreira de Lang: de pé na varanda, observando o mundo ao qual está prestes a infestar.


A NATUREZA COMO REPRESENTAÇÃO DO HOMEM

Iniciando o filme com uma sequência documental da vida pesqueira, que é retomada também no início da segunda metade, a sensação que fica para mim é justamente de um retrato da insignificância, do absurdismo tão caro a Rossellini, se por razões diferentes. Mais de uma vez os personagens são vistos olhando para o extracampo, para o fora de uma cidade que só vemos por dentro dos cômodos e casas. O que veem, então em contracampo, são as ondas e as praias, a água chegando aos rochedos e à areia (o que não veem, mas que também se faz presente na diegese, é o calor). Para Rossellini, essas imagens promovem uma conversa do natural com o divino. Para Lang, a natureza se torna uma representação do mundano: em um plano, Mae fuma na janela com seu bebê dormindo ao lado.

Neste jogo de elementos, falta à água, terra e ar, o fogo.

Após tentar, mas não resistir à sua própria natureza, Mae se entrega aos braços de Earl. Mais a frente, os dois discutem sua situação na praia. Inicialmente achei que o fogo estava bem representado no isqueiro ( utensílio que Hitchcock se apropriou de maneira muito mais iconográfica em Pacto Sinistro (1951) um ano antes, e que evidencia suas diferenças: para Lang, é apenas mais um elemento da cena; para Hitchcock, é o elemento) com que Mae acende os dois cigarros, mas conforme continuam conversando, eventualmente Earl verbaliza o elemento, ao falar sobre o fogo que ambos têm dentro de si e que os impedem de viver as vidas que vivem naquele lugar estagnado.

A partir disso, também seu filme mais sexual? Logo no início, um plano de Marilyn Monroe sem sutiã e logo a seguir seu noivo sem camisa. O macguffin, se é possível chamar qualquer coisa em Lang de macguffin, é uma camisola. Próximo ao clímax, em imagem retratada no pôster, vemos as alças da blusa de Mae caírem em meio à discussão com o marido. O que me faz pensar que, novamente, é talvez o filme onde Lang finalmente consegue o que vinha tentando: de fato, nada de absurdo acontece na trama de Clash By Night, apenas um retrato acalorado e balanceado da vida. O balanço da água, a imutabilidade da terra, a inevitabilidade do ar e, por fim, o caráter metamórfico do fogo.

Ao fim do filme, após quase assassinar Earl em seu ambiente de trabalho, a fervente sala de projeção, o gigante Jerry perdoa a mulher porque não sabe fazer diferente, e assim que a vida aparentemente cinematográfica que Earl a apresentou se tornou possível, só cabe a Mae mais uma vez enjoar da mesmice e procurar mudança. É isso que ela faz em sua primeira aparição em tela, e isso que faz na última.

E me permito fazer uma última analogia, talvez um tanto piegas mas acredito que também perspicaz: se o pescador Jerry representa a água, o projecionista Earl representa o ar (é ele quem traz o calor) e a instabilidade constante de Mae representa o fogo, a terra me parece ficar a cargo de seu irmão que, em monólogo para a jovem Monroe, deixa claro que não quer ser algo passageiro e sim uma escolha duradoura. O que fica, então, para aquela criatura que nem a natureza é capaz de rivalizar?

Neste filme de Lang, a natureza é código para a natureza humana, e não importa o quanto dancem em suas cada vez mais impregnadas cenas, é impossível para aquelas pessoas mudarem quem são. E impossível, também, reduzir Marilyn Monroe a um único elemento.

9

Anterior
Anterior

Crítica | Plano Imperfeito (2018)

Próximo
Próximo

Crítica | Mães Paralelas