Crítica | Mães Paralelas

o Blow Up de Almodóvar

Diretor espanhol conjura elementos de seu cinema em busca de escavação das imagens que o fizeram


O caso em Mães Paralelas (2021) me parece evidente. Protagonizado por uma fotógrafa, interpretada por sua musa Penélope Cruz, este filme tardio de Almodóvar é ao mesmo tempo uma exploração da busca centralizada por Michelangelo Antonioni em Blow Up (1966) e um experimento do próprio cinema de Almodóvar, em uma fase cada vez mais derradeira e consciente de si própria.

Tal como seu título sugere, o filme conta duas tramas paralelas que não se conectam apenas em seus acontecimentos, mas nesse tecido cinematográfico que as precede, seja pela carreira do diretor espanhol ou pelos filmes que vieram antes e durante ela. No caso o filme que dá título a este texto, traduzido no Brasil como Depois Daquele Beijo, é o primeiro em língua inglesa de Antonioni e trata, grosso modo, de um fotógrafo que, ao revelar as fotos que tirou em um parque, desconfia ter encontrado pistas de um assassinato. O que nos interessa, no entanto, é a maneira como a busca é retratada por meio das imagens ampliadas e escavadas pelo fotógrafo.

Iniciando com uma sequência estilizada de créditos iniciais, onde os planos são divididos em negativos separados, Mães Paralelas, por sua vez, nasce de uma inversão que resgata Blow Up mas também o filme anterior de Almodóvar: se em Dor e Glória Penélope Cruz interpreta a mãe do diretor no filme dentro do filme, neste é dela que parte a investigação (ou, no plural) que se dará a partir dali. Também diferente àquele filme, tão biográfico mas ainda preciosista em preservar sua natureza como farsa até próximo do fim, neste o dispositivo é revelado logo de cara: a fotógrafa Janis dirige o arqueólogo Arturo em um ensaio fotográfico, o primeiro plano do filme sendo o setup técnico ao seu redor, as ferramentas utilizadas para a fabricação da realidade que se dá na frente da lente.

Partindo da espectatorialidade de Almodóvar, apenas este início já seria um deleite, mas à maneira que se desenvolve, o filme se comprova uma complexa sobreposição de temas caros ao realizador.


AS IMAGENS DE ALMODÓVAR

Um acaso que precede a cena inicial leva Arturo a Janis, que desenvolve com ele a possibilidade de escavar seu vilarejo natal em busca de seus antepassados, mortos e enterrados em valas comuns durante a guerra civil espanhola. Como apenas poderia ser em Almodóvar, a junção destas duas profissões tão semelhantes (uma cria registros, a outra os procura) resulta também em um romance carnal, que o diretor filma de maneira igualmente reveladora: pela cortina voando da janela, com a câmera na rua.

Veja, Almodóvar não é, necessariamente, um diretor diegeticamente voyeurista. Seus filmes vibram com cores e com sexualidade, mas sendo talvez o principal representante do melodrama ainda vivo (rivalizado apenas por Christian Petzold), suas cenas expressam em sua totalidade os desejos dos protagonistas, e não “apenas” os seus olhares.

Este simples, mas engenhoso plano já situa o olhar do filme como das ruas de Madrid, ou mais especificamente daquela rua de Madrid, um microcosmo que representa uma totalidade incompreensível, um estudo cosmológico específico que se relaciona então com o todo expansivo e adjacente. O objetivo de Janis, afinal, é recuperar e preservar a história de um país marcado pela morte: entre a colonização, as guerras civis e a maior epidemia registrada da história da humanidade, as terras onde a Espanha se construiu são regadas a sangue.

Ainda nos primeiros minutos de filme, Janis mostra a Arturo as fotos de alguns dos antepassados perdidos em seu computador, cena que revela também a dissociação das buscas promovidas por Almodóvar. Filmada em um esquema simples de contraplano (com o plano do clique no mouse iniciando o diálogo entre analógico e digital), tanto as fotos como os rostos dos dois atores tomam conta da tela. Uma das fotos chama atenção especial: a avó de Janis posando, décadas a parte, para a neta fotógrafa. Assim como os espectadores, Janis é conduzida a notar as semelhanças e diferenças consigo mesma, algo evidenciado pelo corte close-up (ainda a ser elucidado ao longo do filme) que revela então a busca paralela: de Janis sobre seu passado, de Almodóvar da musa inatingível que roubou de Hitchcock e que em tantos de seus filmes é uma projeção de sua mãe e das mulheres em sua vida.


AS IMAGENS PARA ALMODÓVAR

Nesta primeira grande sequência, que parece ir direto ao ponto e permitir o filme nascer, chama a atenção a frontalidade com que filma Almodóvar. Enquanto o plano conjunto de rostos é algo comum em seu cinema (e basta relembrar alguns de seus filmes para perceber como é importante o ato de se estar com alguém ao lado), a qualidade milagrosa da câmera parece ressaltar as propriedades da imagem digital para além de sua limpidez, o que impede o filme também de se tornar asséptico. Um aparato menos potente, e se perderia esse caráter detalhista tão importante, pois embora filmar em película pudesse fazer sentido vide o filme que vemos, Mães Paralelas é, como veremos a seguir, um filme também sobre a evolução da imagem e da busca por esta.

A potência da câmera parece se valer principalmente das tomadas externas, onde as ruas de Madrid e seu movimento ao fundo se mostram elementos indissociáveis mesmo dos planos fechados. Não lembro de ter visto tanto relevo em um filme contemporâneo, ao ponto que em certos momentos os protagonistas parecem estar frente a projeções de tela verde, um efeito óptico que me lembra também o que faz David Fincher com suas reconstruções digitais de épocas distintas. Pois embora a busca deva ser analógica, deva ser realizada com pás e picaretas em um campo de terra, ela é também conceitual e, para a fotógrafa Janis e todos os que adotaram o celular como uma espécie de órgão externo, digital.

Diálogo esse que aproxima ainda mais o filme a Millenium: Os Homens Que Não Amavam as Mulheres (2011), por sua vez o Blow Up de Fincher. Naquele filme, como aponta Luiz Carlos Oliveira Jr. (e sua citação é tardia neste texto), o diretor estadunidense propõe uma conversa entre o ontem e o hoje por meio não apenas da investigação do detetive vivido por Daniel Craig, mas por seu contraste com a hacker vivida por Rooney Mara. No filme, ambos exibem seus métodos próprios de investigação - ele em câmera lenta e com fotos e cards colados em uma parede, ela em uma montagem fincheriana esquizofrênica frente a um computador -, mas suas grandes descobertas se dão quando cruzam para a dimensão do outro: ele quando digitaliza fotos impressas e preservadas que tem de escavar no pequeno mundo onde a trama se passa, ela quando vai à uma biblioteca.

Mas voltamos ao filme de Almodóvar, e como a investigação da mancha se dá menos pelo processo da arqueologia, e mais pela trama paralela que batiza o filme. Pois o caso de Janis e Arturo se prova frutífero, e a fotógrafa engravida do arqueólogo casado (comprovando que faz melodrama até no extracampo, Almodóvar dá um câncer à esposa de Arturo, que nunca é vista e impede os dois de oficializarem sua relação), a filha deles a se tornar então o novo artefato a ser desvendado na escavação do filme.

Na gestação, Janis conhece Ana, mãe adolescente de pais que a rejeitam: o pai (também nunca visto) pelo acontecimento, a mãe por dar prioridade à profissão de atriz, em ecos de All I Desire (1953), de Douglas Sirk, influência mor de Almodóvar. Assistindo ao filme e antes de ter todas essas reflexões ao meu alcance, me chamou atenção, em meio ao jogo de simplificações composicionais (a impressão é mesmo do filme mais direto do diretor no que tange a frontalidade das imagens), a maneira como Janis e Ana trocam telefones. A câmera baixa para que Janis escreva seu número em um pedaço de papel, do qual Ana rasga um pequeno pedaço para retribuir. Seu reencontro, portanto, não se dá apenas pelo acaso, elemento mundano importante a outros filmes como Tudo Sobre a Minha Mãe (1999) e Fale Com Ela (2002), mas também por este pequeno ato, o mais instintivamente cinematográfico dos primeiros trinta minutos do filme.

Porque o que Almodóvar faz, neste filme de imagens objetivas e de cores saltadas, é também uma redução ala sang-sooniana de seu próprio estilo. Noveleiro de modo que falta ao cinema contemporâneo brasileiro, cada vez mais carente da dramaturgia tão comum à nossa própria identidade, Almodóvar aproxima a câmera e reduz o espaço da encenação ao limite do comprometimento: em uma raro plano longo, Janis e Arturo vão da cozinha ao sofá da sala, a câmera se movimentando de maneira quase invisível, até que os dois se sentam e um corte os faz preencher a tela novamente.

Nessa linguagem de aproximação e de cortar os excessos, faz sentido que a narrativa acompanhe e seja contada com elipses súbitas, mesmo que por vezes anunciadas pelos fades que parecem mergulhar Penélope Cruz na escuridão das próprias indagações, em uma solução ao mesmo tempo elegante, em sua beleza, e vulgar, em seu aspecto fabricado por meio de plugin.


IMAGEM GENEALÓGICA

E é em um momento talvez menos cinematográfico que Janis e Ana se reconectam: não pelo acaso do encontro (este ainda por vir), mas por uma ligação, pelas possibilidades da tecnologia que, por sua vez, só pôde ser acessada após aquele momento analógico. No mais, como filmar um telefonema, ato já tão impregnado no imaginário cinematográfico, que une duas pessoas em lugares distintos? Ambas ocupadas em seus cotidianos, a ligação não resulta em um reencontro físico e parece até mostrar uma certa descomunicação entre suas vidas, mas para o filme que vemos, a aproximação das duas é inevitável, pois nasce durante sua gestação conjunta. Algo que o acaso enfim trata de consertar, quando se encontram em um café (de nome moderno) e Janis não reconhece Ana, mudada e com os cabelos pintados: esta sim, uma cena devidamente cinematográfica, que me lembra Na Cidade de Sylvia (2007) e porque não, o momento onde Scottie esbarra em Judy.

A presença de Ana provoca novos diálogos entre o hoje e o ontem, entre o analógico e o digital. Antes desconfiada de que sua filha não seria de fato sua (principalmente por conta de um apontamento de Arturo, para Almodóvar, o voyeur segue a cargo do homem), Janis decide fazer um teste caseiro, o qual Almodóvar faz questão de filmar e repetir. O resultado vem, por óbvio, por um e-mail, mas ao descobrir que não é mãe da filha que cria e de criar uma nova certeza de que os bebês foram trocados no hospital, Janis decide não fazer nada.

Isso até ver uma foto da filha falecida de Ana: se no começo do filme o corte aproxima a visão do rosto de sua avó, agora é Janis quem amplia a foto da bebê em busca de algum traço escondido nos pixels do celular.

Na verdade, Janis, por si própria, é uma investigação da vida da mãe, morta aos 27 anos de overdose, assim como a cantora sobre a qual batizou a filha. Uma foto da mãe, hippie e com Janis bebê ao colo, é em certo momento admirada pela fotógrafa e por Ana, agora uma espécie de governanta da casa. Ela própria um artefato, Janis apresenta sua origem para Ana a partir da foto, em cena que termina com as duas transando ao som de Summertime (1968). E aponto também para a inversão do aspecto manual de sua relação, iniciado na troca de números e retomado em sua vida conjunta: se é Janis quem ensina Ana as coisas que precisa aprender, é Ana quem toma a iniciativa na relação sexual. Mas mais do que isso, seria o ato a concepção tardia da bebê que dorme ao lado no quarto?

Me parece que Almodóvar faz de Janis o instrumento do próprio filme, uma personagem que investiga suas origens e seu futuro, cuja genealogia compreende parte importante da história espanhola, e a especificidade de vidas que a ela se atrelam. Um diretor sádico faria com que todas essas complicadas conexões resultasse em uma pane no sistema, mas o cinema de Almodóvar é um onde os protagonistas encenam frente ao espaço filmado pela câmera (com ênfase no espaço, sendo isso que o diferencia de tantos cineastas contemporâneos), e não a sequestram para suas patologias próprias (com ênfase no sequestram, sendo isso que o diferencia tanto da modernidade como da contemporaneidade, dependendo de como se enxergue). Um cinema “clássico”, onde o moderno é muito mais um adereço que uma força disruptiva da forma, e assim suas resoluções muitas vezes descambam para um final feliz, por mais absurdo que este soe.

Pode ser uma mulher se apaixonar por seu sequestrador, um homem se reencontrar com a colega de hospital da esposa ou, nesse caso, todos os jogadores se encontrarem no campo como uma família feliz e orgulhosa, prestes a verem seu passado ser redescoberto em sua frente. Desse modo, um filme de resoluções tão digitais (telefonemas, fotos, testes) termina com pás, britadeiras e, em um plano final que talvez seja o mais político da carreira de Almodóvar, corpos deitados em plena terra.

Se em Blow Up o protagonista desaparece em sua jornada existencial pelo mundo descoberto na imagem, na versão de Almodóvar a imagem de um crânio com seu olho de vidro representa a redescoberta.

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