Crítica | Meu Tio Matou Um Cara (2004)
Brincando de Detetive
Filme de Jorge Furtado propõe amálgama de gêneros em conluio com o cotidiano Porto Alegrense
A cena dos créditos de Meu Tio Matou Um Cara mostra um jogo onde o jogador caminha por uma cena de crime e tira fotos de detalhes do cenário, em busca de desvendar o que aconteceu.
Acompanhada da narração de uma voz adolescente, logo descobrimos que a introdução é também um prelúdio para a premissa (e título) do filme: o tio de Duca, Éder, chega no apartamento da família do irmão informando que, bem, matou um cara. Já a partir dali, as observações de Duca emprestam os ensinamentos do jogo para a vida real: além de questionar fatores importantes, o jovem de 14 anos parece ter uma resposta melhor ao caso que os pais e o tio.
Algumas coisas chamam atenção: assim como no filme anterior de Furtado, O Homem Que Copiava (2003), o protagonista é um jovem (dessa vez mais jovem) negro que analisa e narra tudo que ocorre à sua volta de uma perspectiva de alguém que ao mesmo tempo pertence àqueles ambientes como se ausenta deles voluntariamente, mas diferentemente do filme anterior, que dilui seus pontos de virada ao longo de toda a projeção, aqui o diretor vai direto ao ponto. Afinal, há uma mudança brusca, uma mancha na rotina da família, e esta mesma mancha esconde, como veremos, outras tantas.
Mais ou menos assim: se O Homem Que Copiava parte de Janela Indiscreta (1954), de uma observação do cotidiano (que, no filme de Furtado, enfatiza o aspecto capitalista) que engole toda e qualquer possibilidade de fugir do ordinário, Meu Tio Matou um Cara passa por uma espécie de Blow Up (1966) gamificado, com um enigma prontamente exposto a partir de um registro.
No filme de Antonioni, para lembrarmos, um fotógrafo registra um possível assassinato ao revelar fotos tiradas em um parque. Ao organizá-las em ordem mais ou menos cronológica, este começa uma busca sem resultado em desvendar os enigmas que, ampliados, mais parecem manchas surgidas na imagem. Algo semelhante ao que ocorre mais a frente em Meu Tio Matou Um Cara quando as fotos que mostrariam a infidelidade da namorada de Éder são rearranjadas por todos que botam suas mãos nela, revelando possíveis mentiras e uma verdade rashomonica: sem o registro completo, é impossível saber o que de fato ocorreu.
O filme todo trabalha a partir dessa ideia de incompletude, primeiro nas falhas que surgem no depoimento de Éder, e então nas fotos que supostamente revelariam algo sobre sua namorada. Esperto, Furtado nunca mostra o crime, nunca o recria, o que faria desmoronar a especulação imagética, mas que também reduziria, ou melhor, conduziria o filme a unilateralidade do gênero. Pois de certo modo o diretor parece apenas esboçar essa ideia (o jogo de videogame, os depoimentos, as fotos do detetive), mas que em si nunca mancha de verdade a vida daqueles personagens. No fim, tudo está bem, uma vez que se aceita que um nunca sabe de tudo, e que a vida se reconfigura a todo o momento (o irmão que venceu na vida, o irmão que perdeu na vida, as paixões da escola, as traições e términos).
Entre esse e O Homem que Copiava, é possível dizer que Furtado se mostra um diretor mais do que sensível à Porto Alegre que dá casa aos dois filmes. Trocando o prédio velho de André por um apartamento em um bairro de classe média, se altera também a forma de filmar. Se André estava constantemente olhando para baixo e vivendo uma vida presa ao asfalto (o apartamento de Sílvia é abaixo do dele, ele pula da ponte por pressão do amigo, a estátua religiosa que o encara de cima), Duca parece viver a ascensão social ao seu redor (a escola particular, o apartamento com vista que permite uma vista privilegiada de Porto Alegre, o terraço da namorada do tio).
Gosto muito da primeira cena, que mostra sequencialmente mãe, pai e filho em primeiro plano com os outros dois dispostos ao fundo, uma pequena proeza dentro do aspecto 4:3 que já conversa com a ideia de um filme de ponto de vistas, suscitando também o subtexto sócio-econômico. Apesar de não ser exatamente grande, o apartamento da família de Duca é arrumado e organizado, sem o abarrotamento e o cheiro de velho dos de André e Sílvia, e o próprio aparato parece um upgrade: a câmera permite a Furtado brincar um pouco mais com a profundidade de campo, e também de executar um registro mais límpido, de uma família que vive uma vida boa o suficiente, mas que ainda tem que dividir um espaço relativamente apertado.
A impressão é que se O Homem Que Copiava era um filme sobre o capitalismo, este é sobre uma certa questão de classe. Algo melhor comunicado na visita que Duca faz com a colega (e paixonite) ao tio na cadeia, e podemos ver a reação de ambos a jovens negros interagindo com eles na parada de ônibus, em plano onde a câmera praticamente não mexe ou corta e vemos a ação de maneira clara - o que mesmo assim impulsiona uma nova impressão rashomônica, onde a guria exagera a história sempre que a conta, provocando desconforto em Duca. O que faz de melhor Furtado, nestes dois filmes, é fazer o comentário do filme passar por seus personagens e como estes interagem com a cena. Sempre claro em como mostra tudo, é curioso vê-lo aplicando isso a um filme sobre o que não se vê.
Desse modo, o núcleo malhação se amarra com o tema do filme nos pequenos detalhes: em como a paixão de Duca o faz se distrair do caso (eles são adolescentes comuns, afinal), na piada envolvendo o único outro negro da escola (o porteiro), no amigo dizendo que o tênis de Duca parece tênis de “negão”.
Mais uma vez, um filme sobre fragmentos, que nunca vai muito pra um lado ou pro outro, e justamente por isso não atinge seu potencial em nada que tenta, seja no coming of age, no suspense investigativo ou mesmo na comédia. O que não é um demérito, porque na união disso, Furtado faz um pequeno filme sem pretensões de ser grande, mas que consegue articular um mundo a partir de um jovem e seus olhos.