Crítica | A Origem

O VERTIGO DE CHRISTOPHER NOLAN

Em filme paradigmático em sua carreira, Nolan tenta se aproximar de matriz hitchcockiana


A julgar por seus primeiros filmes, é possível ter a impressão de que Christopher Nolan configuraria ao lado de nomes como David Fincher e M. Night Shyamalan uma nova geração de cineastas hitchcockianos, cada um a seu modo, mas todos bebendo da fonte do autor de Vertigo (1958).

Mais a fundo, hoje diria que Shyamalan está mais para Spielberg (o pouco que há de possivelmente bom) e Mizoguchi (um pouco do que é impossivelmente bom), e que Fincher está mais para Lang (o lugar inóspito construído frente a câmera) e Preminger (o lugar inóspito descoberto pela câmera), mas a questão é que com O Sexto Sentido (1999), Seven (1995) e Following (1998), a grande maioria das comparações era com Hitchcock.

E em Nolan talvez ela faça até mais sentido que com os outros dois - quando pensamos que estes tipos de comparação são feitos por pessoas que se contentam em ler o roteiro filmado -, pois dispôs por boa parte de sua carreira uma série de códigos comuns a Hitchcock: em sua estreia (Following), Nolan faz com dinheiro de bolso um filme esquematizado sobre o ato de seguir alguém; em Memento (2000) e em Insônia (2002), vemos dois homens acometidos por condições psicológicas que devem desvendar assassinatos; em O Grande Truque (2006), vemos um filme sobre a farsa, a encenação e o duplo.

Porém é em A Origem (2010), talvez seu primeiro filme a ser amplamente reconhecido como obra de um nome importante em Hollywood (pois os Batman vinham atrelados à figura do heroi), que Nolan se aproxima de outro grupo de cineastas que, embora já mestres à altura de sua estreia, realizaram próximo a ela um capítulo vigoroso na série Vertigo.


Em um período de seis anos, Dario Argento, Stanley Kubrick, David Lynch e Brian De Palma todos fizeram uma espécie de filme síntese, tanto de suas carreiras como de suas ambições. Em comum, todos têm tramas complexas e marcadas tanto pela presença de elementos hitchcockianos como pela ostensiva influência da arte e de seus habitats (estamos falando de filmes em museus, casas antigas, festivais de cinema, Hollywood).

Mas ainda mais evidente do que isso, é que se observa nesses filmes um interesse pelo onírico, pelas possibilidades de acessar um mundo visto pelos olhos enquanto estes estão fechados para o que de fato pode ser visto. É aqui também, e antes de sequer chegarmos ao filme, que A Origem não apenas comprova limitações já antes vistas no cinema de Nolan, mas a impossibilidade de ele próprio se associar a todos estes nomes.

Porque o que A Síndrome de Stendhal (1996), De Olhos Bem Fechados (1999), Cidade dos Sonhos (2001) e Femme Fatale (2002) têm em comum é um senso de pertencimento, um senso de pela arte inebriarem-se da cultura, da virada do milênio que ficou lembrada por filmes como Magnólia e Beleza Americana (ambos de 1999), mas que de fato foi capturada por diretores que viveram o suficiente do século 20 para que seu fim os fosse tão caro. É na imagem de Tom Cruise caminhando pelas ruas, de Asa Argento no meio de uma multidão, de Antonio Banderas em um café, de um morador de rua em um beco, que estes cineastas situam seus sonhos em um mundo de sensações reais que, com a chegada do novo milênio (e do digital), parecia cada vez mais elusivo.


ONDE SONHAMOS


Se todos estes filmes são também sobre lugares (Florença, Nova York, Los Angeles, Cannes / Paris), o de Nolan reside em um lugar comum na sua filmografia. Notado primeiramente com Batman Begins (2005), em Nolan há um problema evidente na construção espacial que, naquele filme, fez de Gotham um grande amontoado do qual muito se ouve, mas pouco se vê, experiencia ou compreende. Seja por meio da montagem frenética ou mesmo na própria questão iconográfica, é um filme que, como A Origem, não faz questão alguma de se situar em um lugar ou tempo. Apesar do esforço de muitos em traçar paralelos políticos com cidades dos Estados Unidos pós-11 de Setembro, é um filme alheio a estas preocupações, sejam elas crônicas, anacrônicas ou diacrônicas. O crime está em todos os cantos, mas sem um centro é impossível localizar estes cantos.

Se todo filme é um documento de sua época, os de Nolan parecem alienados à ela da pior maneira possível. Não é uma questão de relacionabilidade, mas de sensibilidade, de tato, de palpabilidade. Quando vemos Tom Cruise caminhando pela noite Nova Iorquina, toda uma dimensão nos é suscitada, um astro do cinema tendo uma noite difícil no asfalto, e logo o sonho, o filme e o real passam a caminhar juntos. Com Nolan, isso é impossível por dois motivos, e o primeiro deles é o espaço.

Pegamos, por exemplo, a sequência onde o personagem de Tom Hardy é encontrado: uma cidade abarrotada de algum submundo qualquer, onde logo uma perseguição se inicia e com ela uma confusão espacial que perfura os níveis da percepção. Além de não sabermos onde no mundo estamos, não sabemos onde na cena estamos. Nem Hardy, nem DiCaprio, nem mesmo os figurantes parecem de fato habitar o local mais do que o povoarem. Imagens que, ao mesmo tempo cheias, são vazias.

O dilema do espaço é então confrontado pela mitologia do filme, que Nolan insiste em apresentar como ficção científica. Aprendemos que, para entrar na mente de alguém e influenciar seus sonhos, é preciso que um arquiteto desenhe o espaço do sonho, algo que Nolan comunica com um walk and talk de DiCaprio com a X-Men que atravessa paredes (detalhe interessante, de fato). Durante a conversa, a jovem começa a brincar com as possibilidades do sonho: ela cria obstáculos, bifurcações, paredes que desafiam a gravidade e, na cena mais famosa do filme, vira a cidade de cabeça para baixo. É tudo visualmente interessante, mas mais pela bricolagem que por qualquer articulação fílmica (a sensação é de assistirmos a um tutorial da TV Cultura).

O que me leva ao segundo motivo do porquê o cinema de Nolan, mesmo que se jogando à tridimensionalidade, se mostra unidimensional.


COMO SONHAMOS

A premissa de A Origem é, sem dúvidas, instigante. A ideia de implantar uma ideia por meio dos sonhos, de brincar de Deus com o subconsciente humano, remonta aos primórdios não apenas da expressão dos sonhos na cultura (e posteriormente nas artes), mas da própria biologia.

A questão é como se interpretar esse sonho. Em Lynch, vemos uma reprodução irreal do real, dois filmes em um que se conectam por pequenos macguffins e pistas (ou, para usar o vocabulário de A Origem, totens), mas que se diferem por meio de elementos do cinema, da encenação, da movimentação da câmera, da iluminação. Em Argento, uma extensão surreal do real, pinturas que expandem em cenários fantásticos, cenários fantásticos que se revelam uma corrupção da realidade por meio da psique humana. Em Kubrick, uma vulgarização, do ato e da forma, ao vermos Nicole Kidman se agarrando seminua com o marinheiro em um plano estático, ala anos 1910.

Com Nolan, o sonho é um esquema. Composto por diferentes agentes que podem até configurar uma explicação interessante, mas que evidenciam como, mesmo estando alheios ao tempo, os filmes de Nolan ainda são reféns da cultura. Parte de sua própria revolução da pseudo-verossimilhança, A Origem insiste, como já dito, em se fixar na ficção científica, em explicar seu aspecto extraordinário - e é curioso como os filmes de Nolan tem histórias tão ou mais fantasiosas que os de Shyamalan, mas por serem apresentados de modo “científico” não são tão ou mais ridicularizados.

O que me é ainda mais curioso quando a incapacidade dramatúrgica de Nolan gera momentos risíveis como os que envolvem a arquiteta Ariadne. Escolhida a dedo por Michael Caine por motivos irrisórios demais para o filme, a jovem tem uma mudança de pensamento que nunca é mostrada, refletida ou sentida, e que não apenas ignora, mas contrapõe a própria ideia de um filme sobre mudanças de ideias: ela sai de cena, DiCaprio diz que ela vai voltar, e ela volta alguns planos depois. E não há contexto textual algum para ela - e para nenhum dos outros, exceto Cobb -, o que compromete ainda mais a caracterização de Nolan. Não é, novamente, uma questão de relacionabilidade, mas de não pertencimento. Em Kubrick, não sabemos nada sobre a filha do dono da loja de fantasias exceto que ela é explorada sexualmente pelo pai, mas há um elemento tátil, há algo sobre ela. Para Nolan, todos os personagens são apenas suas funções.

Me lembro então de Johnnie To, diretor de Hong Kong que de certo modo se assemelha ao que Nolan tenta fazer. Em um filme como A Missão (1999), vemos também um grupo de homens com tarefas específicas, e do mesmo modo não sabemos quase nada sobre nenhum deles. O que To faz de diferente, além de evocar uma relação quase espiritual com os espaços, é conjurar a partir do grupo uma sensação de unidade e camaradagem: em uma cena, quando esperam uma decisão importante de seu chefe, os homens começam a jogar bola com um pedaço de papel sem trocar uma única palavra.

É o tipo de cena que jamais entraria em um filme de Nolan, que também nunca filmou o sexo ou o desejo ou qualquer sensação. De certo modo, o cinema de Nolan é o anti-fluxo, que impede a conexão fluida entre as imagens (a montagem paralela mais tira da tensão que a instiga) e também o fluxo de sensações entre, e dentro dessas. Não há um traço sequer de humanidade, de contato com o mundo, é tudo explicação, é tudo trama, é tudo missão (algo que pode ser evidenciado pela trilha incessante, que toca até nos momentos de suposta calmaria).

O que acontece, portanto, é uma redução do mundo do filme a um aparato. As imagens podem ser interessantes em um primeiro nível, mas tudo é explicado (o espaço, as formas do subconsciente), tudo é calculado (o tempo, o tempo dentro do tempo), e nada é sentido. Nada é vivido.


COM QUEM SONHAMOS

De longe o aspecto mais interessante de A Origem é aquele que de fato o liga a Hitchcock. Até então, embora as semelhanças com os filmes mencionados (importante lembrar que semelhanças não precisam ser positivas em comparação), por conta das próprias limitações de Nolan o filme existia em um lugar estéril e asséptico, indigno de ser sequer mencionado na linha de um diretor com profundo comando do melodrama e da dramaturgia.

A presença de Mal pode não promover nenhuma reorganização do filme (esperar modulação de Nolan é como esperar romance de Tarantino), mas pelo menos oferece algo para tingi-lo de algo que não o calculismo inerte de um diretor obcecado pelo movimento.

Como uma espécie de Orfeu que ficou preso para sempre no submundo, Cobb não consegue seguir sua vida por conta das aparições de sua esposa falecida. A relação lembra também a premissa de Rebecca (1940), onde a personagem título exerce uma força inexplicável na mansão onde morava com o marido que, então viúvo, não consegue seguir com sua vida.

A diferença, mais uma vez, reside na articulação deste elemento em relação ao filme: no de Hitchcock, a corporizarão da figura que assombraria seu cinema e atingiria todo seu potencial fantasmático em Vertigo se dá por meio da atmosfera, da cenografia, do deslocamento e aprisionamento dos personagens, suas ações e seus sentimentos em um espaço manchado. Mas se o mundo de A Origem é desprovido de personalidade, há no que envolve Mal uma tentativa. Aprendemos, em mais uma explicação, que Cobb e a esposa tentavam criar um mundo perfeito a partir de suas próprias memórias (e Nolan mostra uma das casas, mas obviamente ela é apenas uma inflexão digital que existe por meio segundo em um contraplano), mas se a ideia é mais uma vez interessante, sua execução é, no máximo, representativa.

E aqui, apontamos para o fato de que Nolan, cineasta que até então na carreira já havia rejeitado tantos gêneros (seu Batman é justamente sobre rejeitar o super-herói), rejeitasse o aspecto fantástico e a textura de horror que o filme parece brevemente suscitar.

Pois se o que há de onírico no filme é inteiramente relacionado à Mal e à projeção dos filhos que segue Cobb, seu usual problema em organizar a mise-en-scène os delega às periferias da orgia de imagens. Em uma cena, Cobb conversa com um personagem dentro de um sonho e olha de relance para o contracampo, onde a mesma imagem dos filhos aparece novamente: é uma montagem desconexa, que não faz sentido espacial (e tudo bem, porque é um sonho), mas que é respondida com um simples olhar apreensivo de Di Caprio. A assombração é mencionada no texto e em imagens, mas nunca afeta ou abala a construção cênica: o bar segue iluminado como um dia normal, o teto no lugar certo, as pessoas desfocadas ao fundo.

O que me leva ao terceiro elemento que impede Nolan de conjurar o que outros cineastas conseguiram.


SONHAMOS?

Embora o contexto de A Origem (implantar a ideia em um sonho dentro do sonho) seja intrigante, sua história é inevitavelmente enfadonha.

Falamos de uma espécie de assalto (e outra leitura pode ser feita sobre como Nolan, Fincher e Tarantino filmam um assalto, e porque todos fracassam em maior ou menor grau), onde o cliente da trupe dos sonhos é um empresário ricaço que, com a morte de seu único rival no ramo, quer fazer com que o filho dele desista da empresa do pai para que… (suspiro)... a competição deixe de existir. Não é preciso, a esse ponto, dizer que todos estes personagens sofrem do mesmo problema de todos os outros. O de Cillian Murphy até tem um quê de daddy issues sugerido, mas é tudo muito sucinto, como se o filme não pudesse perder tempo com conexões humanas porque há ainda muito o que explicar (Interestelar, 2014).

Mas o que nos importa aqui é o caráter entediante da história do filme, e que mostra como Nolan segue refém da máquina cultural. Toda uma mitologia apenas para fazer um rico ser mais rico e, no processo, mostrar também um pouco da sua humanidade, e logo está explicado como seu filme mais celebrado (ao menos pela Academia) é sobre o homem que criou a bomba atômica.

O que me leva também ao problema da imaginação. Interessado mais no esquema que no mundo, mais na funcionalidade que nos sentimentos e emoções, a ideia de Nolan fazer um filme sobre sonhos não deveria chamar atenção de ninguém. Mas cá estamos, em um filme que evidencia não a falta da imaginação de Nolan (algo pelo qual este não pode ser acusado após um filme tão complicado), mas como esta é, novamente, alienada e asséptica.

Que Nolan faz um cinema alheio - ou pelo menos, desinteressado - aos desejos e prazeres humanos todos sabem, mas em A Origem esta sua limitação corrompe tudo que poderia haver de positivo. Um mundo onde pode se imaginar qualquer coisa, e os prédios são reproduções sem vida? Onde o subconsciente produz apenas projeções (ideia interessante) lineares, sonhos que acontecem na linha do asfalto e parecem seguir as mesmas leis do mundo real (ou pelo que ele entende como mundo real)?

Estamos, afinal, no fundo da mente de um homem, e o que vemos é uma viagem de ski? Um retrato assexual, sanitizado, estéril da psique humana, que nem reduz, porque é mesmo incapaz de sequer elaborar uma visão acerca do mundo dos sonhos, seja ele embasado na psicologia ou mesmo na genealogia artística envolvendo o onirismo.

Ignoremos a questão da originalidade (A Origem, afinal, faz parte da exploração irrestrita da obra de Satoshi Kon), e passemos para a incapacidade. Nolan não é diretor para fazer um filme sobre os sonhos, pois mesmo com uma ideia substancial na cabeça, lhe falta a capacidade de arquiteto, de forjador, de alquemista. Nolan é, no máximo, um engenheiro que, no grande esquema das coisas, é menos artista que o mestre de obras, ou do que os homens que empilham os tijolos.

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