Crítica | Retrato de Mulher (1944)

Idealizando a perdição

Poucos filmes são mais tensos que esse de Fritz Lang, lançado no auge do Film Noir dos anos 40 e compartilhando de vários de seus elementos. Além do crime em si, há uma sugestão tóxica por toda a narrativa de que tudo vai dar errado.

Lang até rejeita algumas convenções, principalmente na versão em cores (a qual assisti). A primeira cena já diz muito, Richard é um homem comum, nada próximo de um Humphrey Bogart, e fica claro que é a situação que o corrompe, e não uma relação simbiótica que os "heróis" do "gênero" costumam nutrir. Mesmo as sombras, tão características, acabam dando espaço a uma iluminação que preenche os cômodos, tornando o trabalho de atmosfera algo ainda mais impressionante.

Apesar de que ela exista (a cena do pedágio, por exemplo), acaba sendo menos a estilização e mais um jogo de montagem que cria tensão, momentos quase pré-maneiristas, como o policial parado no sinal e os graves na trilha quando vemos as marcas das rodas na lama. Lang mina com estes pequenos sinais a certeza de que Richard não sairá impune, e o jogo de plano médio/primeiro nos mostra bem o despreparo do homem para a situação...

UMA NOITE SEM FIM

… que começa com uma idealização quase inocente. Dividindo o fundo de sua consciência com "Rebecca" e "Laura", o Noir de "Retrato de Mulher" começa com ela, ou melhor, com Richard admirando sua pintura e idealizando a musa. Quando seu rosto aparece no vidro, é uma cena quase espectral, a trilha cria um sentimento de encanto, e a reação de Richard é semelhante à de uma criança que encontrou com seu herói favorito.

Mas ao contrário dos filmes de Hitchcock e Preminger, aqui é a materialização do desejo que se torna a perdição do protagonista. Richard pode até se encantar por sua imagem, mas é um encanto que dura apenas até sua materialização, logo o assassinato acontece e ele é transportado para um pesadelo, criando precedentes para filmes como "Depois de Horas" e "Blue Velvet". A sensação sufocante é menos por conta de uma série de códigos estéticos - naqueles filmes, que representam a onipresença de suas musas -, e sim por mostrar personagens que talvez não pertençam a eles.

Se em "M" Lang faz um filme quase impessoal que serve de uma das peças fundadoras do Noir, "Retrato de Mulher" se assemelha mais ao seu "Metrópolis", tanto na idealização feminina como nas morais seguidas por Richard. Uma moral que começa a ser testada conforme ele permite o Noir tomar conta de si: a idealização da luxúria se torna a idealização da culpa e logo os dois idealizam matar de novo. A encenação é crucial nessa progressiva: se Bennett sugere uma aura femme fatale que nunca dá as verdadeiras cores, não há a confiança e a rigidez típica do Noir em quaisquer das ações da dupla, mas quando falam em matar seu chantagista, Richard caminha como um verdadeiro gângster recorrendo à saída mais definitiva de qualquer problema.

O final então parece quase um aceno para os filmes mudos de Lang, um foco redondo que ilumina apenas o rosto de Richard, que recusando-se a viver como algo que não é, opta pela própria morte. E… a reviravolta final que quase joga tudo pela janela. É até possível reforçar duas ideias com esse final (o qual Lang teria sido meio que forçado a usar): a do pesadelo sem fim e a de que o filme seria uma "rejeição ao Noir", mas o efeito é tão frustrante que qualquer vontade de relativizá-lo se esvai.

Ainda assim, "Retrato de Mulher" é outro grande filme em uma filmografia tão extensa que pode acabar passando despercebido como um belo retrato em uma vitrine qualquer.

9.2

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