Crítica | O Artista
Pouco se fala sobre as desvantagens de se ter nascido na era da tecnologia.
As vantagens, todos conhecem: internet e afins. E é claro que aquele seu tio avô constantemente deve contar sobre como as crianças eram mais felizes brincando na rua antigamente, mas aquelas crianças não tinham videogames, ou diversas telas à sua disposição. As de hoje têm, e preferem recriações coloridas do mundo real ao invés deste, pois ele tende, na maioria das vezes, a ser hostil demais. Violência, poluição, tragédias, parece que tudo está tão perto de nós que olhar para o mundo pelas lentes dos jogos e desenhos e filmes soa definitivamente mais seguro.
Mas se é possível falar por horas sobre estas vantagens e desvantagens, há algo que as crianças de hoje perderam e, na maioria das vezes, não fazem questão de pegar de volta: os lentos passos da cultura ao passar das décadas. Já dizia Pauline Kael: não há filmes velhos, apenas filmes que você ainda não assistiu, mas isso é demais para a cabeça de quem cresceu com Bob Esponja (e eu adoro e defendo Bob Esponja com todas as minhas forças). Por isso, quando um filme como “O Artista”, um artefato vindo direto da era silenciosa do cinema, vê a luz do dia, é um evento tão próximo como um clique, mas tão distante como o quase século que o separa destas crianças.
Dou graças por ter assistido a este filme de Michel Hazanavicius apenas quando meus olhos já estavam ao menos treinados, pois caso as lentes do século 21 não sejam tiradas, é bem possível que “O Artista” seja tão interessante quanto ligar o rádio em uma estação tão antiga que o chiado do sinal seja mais audível que a própria música.
Propositalmente filmado em 22 frames por segundo para recriar, em parte, as imagens aceleradas dos filmes dos anos 20 (eram 16 na época, mas o diretor optou por 22 para evitar maior estranheza dos espectadores), tentar pontuar qualquer aspecto negativo na parte técnica do longa é um exercício de inutilidade. Hazanavicius domina a misé-en-cene com excelência, se utilizando da total imersão provocada tanto pela fotografia de Guillaume Schiffman quanto pela minuciosa recriação de mundo, para oferecer a seus atores toda a liberdade - ou falta desta - que a falta de diálogos traz. Imagino que diversas tomadas foram necessárias, pois a sincronização e sinergia deles com as câmeras é tamanha que é impossível que não soubessem onde cada lente se encontrava. Também notável é a interação do personagem de Jean Dujardin, e de seu carismático e premiado companheiro canino, com a trilha sonora, composta primordialmente de música clássica e com interpolações de temas de “Vertigo”.
O diretor, que também assina o roteiro e a edição, é eficaz em orquestrar a estrutura do filme para que o uso de inter títulos não seja excessivo e consegue, mesmo com sua simples história, ilustrar bem o momento conturbado que Hollywood passou na transição do cinema mudo para o falado. Graças à performance de Dujardin é possível perceber toda a negação e desespero presente em atores que, do dia para a noite, se tornaram obsoletos, algo que até hoje ocorre nas mais diversas formas de arte.
Mas tudo isso, e mais, sobre os valores cinemáticos de “O Artista” já foram analisados e destrinchados por virtuosos e especialistas do cinema mudo, eu não sou um deles, então o que posso oferecer de novo é a visão de alguém que cresceu assistindo à apenas duas séries em preto e branco (e esporadicamente): “A Família Adams” e “A Família Monstro”, no fenomenal e extinto quadro da Nickelodeon “Nick at Nite”.
Assistir a este filme foi uma tarefa prazerosa por diversos motivos, mas talvez o principal deles seja este:
Acredito que assistir a um filme é o equivalente a olhar para outro mundo por uma janela e, por mais que os fantásticos efeitos visuais possam criar cidades e criaturas advindos de nada se não da pura imaginação, há algo de mais profundo e cativante em enxergar um mundo muito mais parecido com o seu, mas ainda assim, tão diferente. Quando pequeno, eu me perguntava se a cor era uma coisa recente, me perguntava se meus pais e avós haviam nascido em um mundo em preto e branco, e imaginava o quão apavorante e sufocante isto deveria ser. Mas ao assistir a “O Artista” finalmente percebi que, mesmo se aquele fosse o caso, o mundo não deixaria de soar fascinante e belo. Explicar o porquê disso, está além de mim.
Mas, ainda assim, não julgo este como um filme perfeito, justamente por não acreditar na forma como Hazanavicius decide terminá-lo. A natureza da relação de George Valentin e de Peppy Miller - interpretada com vivacidade por Bérénice Bejo -, por mais que mostre um ciclo de generosidade por parte de ambos para com o outro, é inegavelmente bizarra do ponto de vista amoroso. Não é algo que tenha diminuído meu apreço por toda a experiência, mas como filme, é um traço do roteiro que ainda não me convence.
Apesar disso, a força deste filme vai além de sua ambiciosa proposta. Uma carta de amor ao cinema, “O Artista” é um filme atemporal, uma raridade, um presente. Uma doce lembrança de um tempo que não mais volta, para pessoas que, mesmo não tendo o vivido, são convidadas à sentir sua falta.