Crítica | Entre Facas e Segredos

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Não sei porque demorei tanto para escrever sobre o terceiro filme de Rian Johnson, um dos meus favoritos absolutos de 2019.

Escrito e dirigido pelo cineasta responsável pelo melhor “Star Wars” em mais de 35 anos, “Knives Out” recebeu título de novela das sete no Brasil pela impossibilidade de traduzir o significado da expressão original, mas, por incrível que pareça, o nome pastelão quase combina com a estrutura novelística e, porque não, hilária do longa, o qual já conferi três vezes e em todas passei a admirar mais o trabalho realizado.

Um clássico mistério “quem fez?”, Johnson subverte o próprio gênero nos entregando a revelação na metade do filme, mostrando que o como e o porquê são ainda mais fascinantes do que o quem, que, nas revisitas, chega a tomar um espaço ainda menor quando conhecemos as batidas do roteiro e podemos apreciar o que ele tem de melhor: os personagens.

Pois recentemente assisti ao entediante “O Assassinato Em Gosford Park”, um filme sobre esnobes britânicos - e, aparentemente, para eles também - e constatei que, ao final da projeção, simplesmente não me importava nada com nenhum dos personagens, por melhores que fossem seus intérpretes. Já aqui, Johnson parece ter pedido a todos que saíssem um pouco da realidade e abraçassem o estereótipo que encarnam, o que cada um dos atores faz enquanto, visivelmente, se divertem demais contracenando um com a quase caricatura do outro. Logo, além de construir criaturas que adoramos acompanhar seja por seus valores ou por sua hipocrisia, Johnson torna o mistério principal em algo interessante justamente porque pode revelar segredos de cada um deles.

E assim conhecemos a família Thrombey, centrada em torno de Harlan (o sempre admirável Christopher Plummer), um renomado escritor de mistérios e como todos os seus filhos vivem em função de seus talentos. Quando este é encontrado morto, o detetive Benoit Blanc se encarrega do caso por suspeitar de um assassinato.

Claramente traçando um comentário político e social, Johnson transforma a figura de Marta Cabrera, a cuidadora interpretada pela sempre intensa Ana de Armas, em uma protagonista extremamente identificável em meio a tantas figuras esquisitas. A atriz Cubana, para nós brasileiros pode parecer… bem… branca, mas para os olhos americanizados da família Thrombey ela é visivelmente latina, diferente e, sim, inferior, por mais que eles se achem desconstruídos e caridosos por lhe darem um emprego, mesmo que nem ao menos saibam sua origem (o que resulta em uma piada recorrente que me pegou em todas as vezes e a qual Johnson, sabiamente, mantém como um segredo, pois, assim como em seu “Star Wars”, não deveria importar de onde você vem).

E apesar de que as intenções de Johnson sejam fáceis de se captar, a forma irônica com que ele as aborda impede o filme de se tornar auto-indulgente ou forçado. Alie isso às interpretações e às piadas involuntárias que todos professam, e um suposto filme de mistério se transforma em uma das comédias mais eficientes dos últimos anos.

Em uma cena, a “guru do estilo de vida zen e saudável” Joni, interpretada pela única e mais do que singular Toni Collette, diz ter lido um tweet sobre um artigo sobre o detetive e não percebe o quão ridículo e raso é o comentário que acabara de tecer - ela ainda completa a frase com um “você é famoso!”. Contrapondo sua visível ignorância e jeito desprendido, está a Linda de Jamie Lee Curtis, que se gaba por ter lido o tal artigo ao endereçar o detetive (o qual ela trata com desdém por ser inferior, obviamente) e também por ter conquistado tudo do zero (ou seis zeros, ao lado do “1” que seu pai depositou em sua conta). O marido de Linda, interpretado por Don Johnson como um tipo que todos conhecemos, defende Trump apesar de ser um louco, e não hesita em repetir o slogan “América para os Americanos”, enquanto diz que considera Marta uma igual por ela ter vido legalmente para o país (enquanto a entrega o prato que havia acabado de comer sem nem ao menos pedir por favor). Já o Walt, do irrepreensível Michael Shannon, não parece nem ao menos ler os livros que o pai escreve, sendo que prefere ler os contratos de adaptações cinematográficas que tornariam “seu” império ainda maior.

Mas a família não para por aí: o filho de Walt é um troll da extrema direita na internet, enquanto sua prima, filha de Toni, é uma adolescente que eu e você também conhecemos, que postou um quadradinho preto no Instagram e briga pela legalização da maconha, mas no fundo não abriria mão de nenhum dos privilégios que tem. A mãe de Harlan é uma velhinha aparentemente senil cuja idade (e discernimento, diga-se) nunca descobrimos mas que rouba a cena mais de uma vez, e a mulher de Walt é a legítima “cidadã de bem” que postou fotos com as cores do Brasil no Facebook em 2018. Até mesmo os oficiais encarregados do caso merecem destaque, sendo que Lakeith Stanfield precisa de pouco tempo para mostrar seu carisma e nos faz querer ver mais dele, enquanto Noah Segan faz rir em todas as suas observações sobre como o caso relembra as histórias que Harlan escrevia. Johnson reserva espaço para todos brilharem, e não deixa de mostrar elementos afetuosos da relação de cada um com Harlan, desde o velho tratando Walt como um menino e sofrendo por isso, ao sorriso que Linda esboça quando lê a carta que o pai deixara para ela, e somente para ela.

Porém, as figuras centrais do longa só poderiam ser Marta, o Capitão América (percebem o quão gênio é Rian Johnson?) e o James Bond/Mikael Blomkvist (é sério). Chris Evans prova mais uma vez que é um grande ator por debaixo dos músculos dando vida à Ransom, que em seu nome já deixa claro seu papel na trama (procurem a tradução), a ovelha negra da família por denunciar a hipocrisia com que todos vivem, único capaz de derrotar o avô Harlan no gamão e o único o qual ele realmente se identifica. Já o Benoit Blanc de Daniel Craig é um caso a parte: com um sotaque britânico/francês proporcionalmente tão engraçado como esquisito, métodos pouco convencionais, e em primeira mão incapaz de descobrir qualquer coisa, o personagem nasceu para se tornar clássico e, não por menos, Johnson já planeja sequências o tendo como peça central do tabuleiro.

Mas se a coleção de seres que o cineasta nos apresenta rende o suficiente para uma tese de mestrado, as habilidades técnicas dele como diretor também merecem destaque. Frequentemente colocando os rostos dos atores em evidência, como que nos convidando a tentar pescar o que é mentira e o que é verdade em tudo que falam, Johnson compõe belos quadros, sempre com várias pessoas em cena, criando um efeito duradouro de que a mansão em qual a história se passa é habitada por aquelas pessoas, e que enquanto vemos uma em foco, outras estão borradas em nosso campo de visão, aludindo claramente aos segredos que guardam. Além disso, as simbologias vão desde o primeiro ao último plano, passando pelo fato de Harlan ser um escritor de mistérios, à importância do tabuleiro de jogos (afinal, o gênero é diretamente ligado ao jogo Clue, traduzido para nós como Detetive), ao trono de facas onde ele se senta como que sugerindo que por mais completo que ele seja como artista, sentar em seu lugar é também uma maldição por tirar o pior de seus familiares e os jogarem contra si. Além disso, Johnson ainda cria um traço para Marta que a torna a protagonista perfeita: a jovem não pode mentir pois, se o fizer, vomita instantaneamente.

Trabalhando com os mesmos nomes de “Looper” e “Os Últimos Jedi”, Johnson traz de volta o diretor de fotografia Steve Yedlin, que emprega uma paleta rebuscada e levemente arroxada, como que pulando por cima da violência do sangue e tornando luxuosa e pomposa toda a narrativa. O editor Bob Ducsay foi terrivelmente esnobado na temporada de premiações, pois faz um trabalho monumental de alterar entre os muitos rostos de forma orgânica e quase reveladora, ao passo que Nathan Johnson, primo do cineasta, utiliza de composições clássicas extravagantes para ditar os desenrolares da história, com destaque para violinos que parecem arranhar os ouvidos em diversos momentos.

Eficaz até mesmo ao transformar a obrigatória revelação, cheia de exposição, em um momento fascinante, Johnson nos envolve de tal maneira que, naquele ponto, é como se fosse merecido. Curiosamente, esse é também meu único apontamento “negativo” do longa, pois jamais senti o frio na espinha que os melhores mistérios devem passar, por mais que tenha amado cada momento da construção, desconstrução e revelação da verdade. E aqui vai um spoiler: após re-assistir o longa, tenho plena consciência de que Harlan percebeu que alguém armou para Marta e, com isso, decidiu fazer com que seu último ato fosse mais uma de suas histórias, fazendo com que a vida imitasse a arte.

Terminando com um plano genial onde Marta segura a caneca que inicia o longa, enquanto é vista acima de todos aqueles que “sempre foram bons com ela, e queriam que ela estivesse no funeral, mas foram voto vencido”, Johnson faz mais do que revitalizar um gênero que, infelizmente, temos muito pouco no cinema, mas entrega um de seus melhores exemplares e que funciona melhor a cada nova revisita.

“Entre Facas e Segredos” é um daqueles filmes universais, que todos podem e devem assistir, pois além de ser diversão de primeira, faz uma análise ácida e realista do momento que vivemos.

9.3


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