Crítica | Cruella
Um amigo meu comentou, esses tempos, como a Marvel fazia -> bem <- para o Cinema, por fazer com que jovens crescessem querendo fazer filmes.
Essa frase é, acima de tudo, ignorante e alienada (sim, disse isso pra ele) quanto ao atual momento do monopólio da Disney: ao invés de expandir a criatividade, de perseguir a originalidade ou a expressão do indivíduo, o objetivo do Mickey Mouse é seguir a trilha do dinheiro, transformando Cinema em fast-food e fazendo todos acreditar que é a única opção viável. Vejam, isso não quer dizer, de maneira alguma, que você não pode gostar da Marvel, ou da Pixar, ou etc, eu mesmo gosto muito de (quatro) filmes da Marvel, vários da Pixar e alguns diretamente ligados à Disney. O problema é você achar que esse monopólio é bom para a Arte (e para você), quando na verdade é apenas uma estratégia suja da indústria.
O incrível de “Cruella”, mais novo remake que transforma uma vilã em protagonista, é que poderia ser um filme rebelde como se propõe, criticando a superficialidade do mundo da moda e da própria Disney em manipular sua área como bem entende, mas que jamais cumpre o seu potencial. Existe aqui a visão do autor, figura que geralmente é engolida pelo sistema - seja ele o designer ou o cineasta -, sendo que Craig Gillespie faz um filme que remete à seu “Eu, Tonya” na maneira como experimenta com diferentes formas de linguagem, procurando a irreverência, mas ou por decisão própria, ou por supervisão, o filme se torna mais um embate cliché entre as duas personagens principais do que uma representação do papel da moda na sociedade e nos dramas particulares de cada uma.
Há momentos valiosos, como aqueles onde passeamos e conhecemos as estranhas dos ambientes em steadicam (aquela que permite um movimento contínuo sem o balanço da câmera) e que relembram a cena do restaurante em “Os Bons Companheiros”, ou mesmo a escolha por animais digitais que reforçam a ideia de algo propositalmente menos realista, mais fantasioso, mais cartunesco, assim como a cena envolvendo o pouso no mar que soa propositalmente falsa e absurda. Há uma certa diferença na maneira como a instabilidade dos personagens é filmada, com a câmera vindo pra mão, porém o contraste se mostra menos impactante quando as tomadas do inabalável império da Baronesa são menos polidas e estéreis do que poderiam. Esse contraste poderia fazer muito bem ao filme e dialogar com a ideia da rebeldia, artística e pessoal, de Cruella, mas fica na metade do caminho.
Porque pensem, a moda, como qualquer outra forma de expressão artística, se constitui de convenções que representam e influenciam a sociedade a sua volta, mas aqui parece que não existe um mundo onde os embates entre as duas acontecem, existe apenas o embate, que se torna penosamente vazio quando percebemos que é necessário uma reviravolta mirabolante pra fazer com que nos importemos - eu não me importei tanto assim, na verdade. Em sua primeira aparição, a Baronesa lê uma crítica e se delicia, que momento melhor para trazer a crítica de volta do que o vestido de lixo, que no fim soa só como outra ceninha. Problema que o próprio “Eu, Tonya” sofria, pois apesar da metalinguagem empregada por Gillespie - que aqui não quebra a quarta parede, pelo menos -, ela vem na forma de firulas que procuram criar cenas para serem compartilhadas no Instagram, como se o filme caçasse momentos icônicos com conhecidas músicas Pop, ao invés de procurar ser verdadeiro com sua própria unidade estilística. De novo, se isso é culpa do diretor ou da Disney, não sei.
O que acaba por desperdiçar o elenco, bem dirigido e em sincronia com a identidade do filme, encabeçado pelas duas Emmas que quase elevam a produção de nível. Roberts se diverte como uma mistura de Meryl Streep em “O Diabo Veste Prada” e Snape, de “Harry Potter”, ao passo que Stone encarna uma versão alternativa da Harley Quinn, que apesar da transformação abrupta e mal aproveitada - a cena onde ela luta com os seguranças é tosca, no mal sentido - convence de sua insanidade e da paixão que sente por essa insanidade. E se os capangas servem como, respectivamente, recursos cômicos e emocionais, eles funcionam como tais, ao contrário da jornalista Anita que tem a mesma complexidade de uma camiseta básica que você compra nas Lojas Americanas. Já os figurinos, embora inventivos, soam vazios justamente por representarem nada mais do que o embate, ao ponto de que o baile final perde impacto naquela que era pra ser a cena que mostra a influência de Cruella.
*Apenas um detalhe, mas… o avanço de dez anos foi um erro de cálculo do casting, pois os atores são - bem - mais velhos do que seus personagens.