Crítica | Creepy
Bong Joon-ho é um confesso fã do japonês Kyoshi Kurosawa, um dos diretores de suspense e terror mais celebrados dos últimos 30 anos, e talvez nenhum filme evidencie tanto isso quanto “Creepy”.
Clara influência para “Parasita”, mas menos preocupada com a sátira e a crítica social e mais com os dramas das pessoas que expõe, o longa é um prato cheio para os amantes do gênero: acompanhamos o ex-detetive Takakura enquanto este retorna à um caso sem solução, ao passo que sua esposa começa a se envolver com o estranho e suspeito vizinho Nishino. Em sua estrutura básica, o roteiro já faz o expectador ligar pontos imaginários para tentar desvendar o que de errado há em cada uma de suas distintas tramas, e é fascinante como os cortes abruptos entre uma e outra podem tanto separá-las como sugerir uma ligação direta.
Mas Kurosawa (que nada tem a ver com aquele Kurosawa) é menos calculista que Bong Joon-ho: se aquele faz de “Parasita” um filme Fincheriano e formalista ao extremo, há em “Creepy” uma certa liberdade em cena que seus personagens podem percorrer, mesmo que sempre pareçam estar presos dentro das panorâmicas da câmera. Explorando o comprimento das locações de maneira lateral, aqui um personagem segue outro na rua, ali dois jantam e percebemos que nada há de paz e serenidade entre ambos, mas sim inquietação. Interpretada por Yuko Takeushi, Yasuko dá vida à uma dona de casa que parece sentir necessidade em fazer amizade com os vizinhos - se fosse minha vizinha eu bateria a porta na cara depois da segunda tentativa -, talvez como forma de ocupar a vida e a cabeça de alguém que sabe dos impulsos do marido em se envolver em casos perigosos. Essa pré-ciência gera estranheza e distanciamento entre os dois, e é crucial para que a esquisita reviravolta faça qualquer sentido.
Pois além de um suspense enervante e um terror pra te deixar acordado depois, “Creepy” traz também um componente de drama familiar em seu centro, e como este afeta e é afetado pelos acontecimentos extraordinários que envolve o casal. De certa forma, o que move ambos é a mesma necessidade de fugir de um casamento que talvez não esteja mais dando certo, apesar das aparências sugerirem o contrário. E para mencionar Fincher novamente (esses três devem dar uma bela mesa redonda), é curioso como o casal dá vida à frase de Martin Vanger em “Millennium”: o medo de ser mal educado - e a curiosidade - são maiores do que o medo do desconhecido e da morte. Koichi é obcecado com casos que não consegue desvendar, enquanto Yasuko passa os dias procurando algo que, ao menos, lhe entretenha, mesmo que isso envolva o esquisitão da casa ao lado.
Hábil em fazer com que as jornadas dos dois se desenvolvam e se cruzem de maneira que somem à tensão e que representem o estado degradante daquele relacionamento, Kurosawa nos deixa salivando por mais a cada momento: quando parece que vamos descobrir algo de um lado, somos jogados pro outro. O design de produção é essencial também em diferenciar os dois cenários, sendo que o bairro dos Takakura surge em meio à árvores mal podadas e gramas altas sugerindo um perigo maior justamente por permitir uma certa obstrução na visão, enquanto a escola de Koichi é um ambiente estéril e impessoal que reforça o tédio que sente longe dos mistérios e investigações. E assim como “O Lamento”, lançado no mesmo ano, há uma clara referência à “Rashomon”, tanto o filme e as versões diferentes de uma mesma história, como a lenda de que o portão de Kyoto era a casa de um demônio.
Como um confesso cagão para filmes de terror, “Creepy” me deixou apavorado por uma hora e meia, mas me perdeu próximo do fim. Não entendo (quase) nada de japonês e a legenda estava atrasada, então foi um pouco difícil entender o poder que o vilão exercia sobre suas vítimas. Mas mesmo após pensar sobre o filme e perceber como esse domínio surge mais como uma força emocional da narrativa do que lógica, sinto como se fosse preciso um esforço quase hercúleo para entender o motivo de Mio ir para a escola todos os dias e ninguém perceber que… bem… ela se tornou um zumbi teleguiado. E seu fim me parece insuficiente: o abraço dos Takakura é comovente, a felicidade de Mio é inquietante, mas terminar o longa com a imagem de Nishino caído soa como um erro, de vangloriar um vilão covarde e não as pessoas que sofreram em suas mãos e tiveram seus arcos concluídos segundos antes.