Crítica | O Batman
O HERÓI E A CIDADE
Em encarnação mais sombria do personagem, Matt Reeves aproxima figura e lugar de maneira simbiótica
Na primeira cena desse terceiro Batman em menos de 10 anos, o “herói” vigia pessoas nas janelas de um prédio por um binóculo.
Olhar, o ato mais característico e representativo do Cinema, que teve em si o ponto de virada entre o Clássico e o Moderno, simbolizado por um homem e um par de binóculos, observando seus vizinhos por uma janela.
Mas se na obra prima de Alfred Hitchcock o protagonista era inofensivo e procurava distração para sua atual situação (a perna quebrada), no filme de Matt Reeves já estamos 68 anos retirados daquele momento, e ao menos alguns (no universo do filme) da grande transformação de Bruce Wayne, o órfão bilionário, no Batman, o herói mais trágico de todos. Logo, a ação não é uma distração e não parece (mais, pelo menos) provocar mais prazer do que a dose diária para um viciado em gotas - o Batman de Reeves e Pattinson parece a beira de um colapso psicológico, realizando suas tarefas como que uma obrigação inerente que o torna tão refém como sequestrador.
O filme inclusive faz um belo trabalho logo na sequência em estabelecer essa relação: na narração deprê e emo, vemos o impacto dos olhos sempre observadores de uma presença imperceptível tanto em quem observa, como em quem acha que está sendo observado. O medo dos bandidos se torna o mesmo do cidadão comum, e embora as sombras o deem forças em sua missão como herói, acabam derrubando a ponto de putrefação o humano que antes dividia o mesmo corpo. A cena com as lentes de contato sendo o ápice não só dessa temática do olhar, mas da diferença entre as classes que o filme também se propõe a tratar, sendo que o próprio Batman se sente desconfortável quando vê o mundo por alguém que não o bilionário ou o vigilante.
Talvez seja o filme do gênero que melhor trabalha a dicotomia entre o ser e a figura desde Homem-Aranha 2, fazendo duas coisas que a maioria de seus parentes falham miseravelmente:
O BATMAN É, DEFINITIVAMENTE, UM FILME…
O que virou piada em todos os círculos, aqui uso como elogio.
O simples fato de existir uma lógica interna e própria, idealizada por um autor e executada pelo próprio, já torna este Batman superior à grande maioria dos filmes que a Marvel vem fazendo nas últimas duas décadas (e o DCU também, mas esse porque os filmes são ruins mesmo). E não que Reeves tenha total luz verde para fazer o que quiser, pois não é possível que já haja motivo para outro Coringa que não a obsessão das massas com o personagem, e certamente é de interesse que tantos outros personagens conhecidos sejam vistos ou mencionados sem qualquer necessidade se não mover a narrativa a frente.
E o filme quase consegue lidar com isso subvertendo a própria ideia da simplicidade do gênero. Não que consiga perfeitamente, mas não há um momento onde o objetivo da trama se mostre claro, e sim uma série de conexões que vão surgindo mais como um videogame, em um filme que - graças - liga menos para sua história e mais para como contá-la. As referências à David Fincher são claras (ele, talvez o cineasta norte-americano mais influente dos últimos 10 anos), mas o filme parece mais um remake de Se7en do que propriamente uma assimilação.
Isso definitivamente fragiliza alguns aspectos do mistério, que parece apenas operacional e não necessariamente uma parte inerente ao universo do filme, além de passar longe de emular os melhores momentos de Se7en - o interrogatório está muito mais próximo de um filme para a TV do que daquele protagonizado por Pitt, Freeman e Spacey (ou aquele visto em Cure), com um Paul Dano tão óbvio e sem sal que me fez sentir saudades de Jared Leto.
Porém, as referências tão visíveis fortalecem o universo em si (Reeves parece assistir e amar filmes), o que torna os acontecimentos em meras representações do que se tornou normal naquela que talvez seja a caracterização mais interessante de Gotham até hoje. Assisti com minha mãe, que amava os “gibis”, e é divertido como alguns comentários casuais significam tanto: “não para de chover nesse filme” sendo o melhor deles e, mesmo sem ter o conhecimento teórico e de linguagem (ela viu muitos filmes, mas se diverte tanto com os garimpos que encontra na Netflix como com um clássico incontestável), é incrível como um filme com pegada deixa sua marca em qualquer um. Pelo menos umas cinco vezes ela expressou as palavras mais adequadas: sombrio, sinistro, depressivo.
Assim, com suas ruas que lembram Blade Runner, seus cantos escuros que escondem o produto ambíguo que se tornou o Batman, e filmadas com um filtro vermelho que parece atear chamas à uma cidade em decadência, a Gotham de Reeves é o ambiente perfeito para a criatura do título.
… DE SUPER HERÓI
Talvez o que eu mais tenha gostado é que mesmo com essa veia que abraça a própria seriedade, O Batman não deixa de se apaixonar com a natureza exótica de seu personagem. Um homem vestido de morcego lutando não deveria deixar de ser divertido, e momentos bem óbvios como sua caminhada em direção ao carro virado do Pinguim (tirada diretamente de Millenium) possui uma estilização que glorifica as habilidades do herói sem deixar de aludir para o absurdo que é toda aquela situação - me lembrando de Cosmópolis, outro filme com Pattinson.
O ator que, todos sabem, iniciou a carreira como um mago mas estourou como um morcego brilhante, e que aqui me parece meio contido em excesso. Na verdade, a encenação deve ser a maior fraqueza do filme, com cada peça do elenco funcionando em suas individualidades - Jeffrey Wright imita muito bem Morgan Freeman, Ferrell se diverte como Pinguim, Turturro funciona como Falcone -, mas nunca compondo uma lógica estabelecida. Acho que só a Zoe Kravitz que pega bem a ideia da coisa toda, nunca abandonando a carga dramática que o filme pede, mas oferecendo uma sensualidade e uma tendência a se divertir enquanto se destrói que falta pros outros.
É dela a melhor cena, no terraço com o Pattinson (que parecia mais nervoso que um guri na quinta série com a guria que gosta) em um beijo que lembra tudo de Homem-Aranha 3.
Mas apesar de não brilhar no que outros filmes do gênero triunfaram - ninguém vai lembrar de nenhuma atuação aqui como a do Ledger, Nicholson ou Phoenix - a caracterização do filme é tão auto-realizada que a relação entre ela e seu protagonista se torna o ponto principal. O Batman de O Batman é um herói no melhor sentido da palavra, um ser que se sacrifica pelos outros (essa sendo a segunda característica que a maioria dos filmes do gênero esquecem) a ponto de sua própria identidade ser deixada de lado.
Reeves encontra meios simples, mas efetivos de mostrar esse heroísmo: um plongé cima-baixo que o mostra liderando os sobreviventes pela água, em um simbolismo mais comumente atribuído ao Super-Homem, mas que aqui também conversa com a sobreposição das figuras do morcego e do rato. Quando tenta voar, este Batman se machuca e da próxima vez decide descer pelas paredes; mesmo quando anda por cima (no estádio), se movimenta pelas entranhas dos lugares, o clube dentro do clube, as escadarias, os becos, a batcaverna; os cantos escuros que exprimem as imagens; a câmera e seus desfoques que emulam a fraqueza de seu observador protagonista. É uma estética que torna Batman e Gotham uma única entidade, em uma relação simbiótica e destrutiva.
PRECISA DE UMA FRANQUIA?
O lógico, dado o sucesso da produção e o desinteresse da DC em tentar emular a Marvel (após fracassar amargamente ao tentar), é uma série de filmes própria, que deve acontecer em formato de trilogia. Surpreendentemente, acho que são filmes que se mostram necessários para que Reeves consiga realizar de vez o que visualizou para o personagem, mas mais que isso, são filmes que soam interessantes.
Ainda prefiro o realismo com tons de super-heroísmo escondidos de O Cavaleiro das Trevas, mas talvez, acertando o tom da encenação e conseguindo mais liberdade para se livrar das obrigações de qualquer trabalho envolvendo o Batman (chega de Coringas!), o diretor consiga entrar no panteão dos grandes trabalhos do gênero - por hora, ser um filme já é uma imensa vitória.