Crítica | Gritos e Sussurros
EM BUSCA DO QUE HÁ DEPOIS
Em obra prima, Ingmar Bergman mais uma vez questiona a morte
O Cinema de Ingmar Bergman volta e meia me faz lembrar uma mistura de Robert Bresson e Éric Rohmer.
Bresson, porque é impiedoso em como investiga a deterioração da condição humana, mesmo que não com a miséria do individuo na sociedade como cenário, e sim com a miséria emocional em situações mais específicas. Se em Persona é o desgaste psicológico que acarreta essa miséria, em Morangos Silvestres é o fim da vida, em Cenas de um Casamento o fim de um relacionamento e em Luz de Inverno a fé, em Gritos e Sussuros são as relações familiares, fadadas ao desgaste, que deterioram a matéria do filme.
Meio que uma versão estilizada de Sonata de Outono (ou melhor, Sonata de Outono é a versão minimalista de Gritos e Sussurros), onde esse drama movido por uma doença terminal termina de queimar as pontes que uniam aquelas pessoas - ao ponto de que se alguém conseguir assistir esses dois em sequencia e sair vivo, aguenta sair correndo pelas ruas de Porto Alegre no frio de 2022.
E Rohmer porque, diferente de Bresson, todas as cenas são resolvidas em conjunto, tudo se resolve em relações e momentos aparentemente triviais - o próprio sussurro que aproxima mãe e filha e os choros perdidos são meio que isso -, mas que com Bergman tomam uma dimensão dramática e depressiva, com algo tão simples como um toque sendo tão destruidor que faz o momento chave de O Joelho de Claire soar quase como um carinho.
É uma combinação obviamente potente, mas se Bergman poderia puxar apenas para este lado devastador que surge da combinação dos dois, seus filmes parecem ser tingidos por um afeto genuíno por todas os personagens que cria - especialmente as mulheres. Não fosse isso, ele faria Rohmer e Bresson soarem como uma sessão agradável de família.
ESTILIZAÇÃO SUBSTANCIAL
Um de seus filmes mais carregados esteticamente, Gritos e Sussurros nunca faz isso apenas por fazer. O vermelho sangue, os fades que demarcam a passagem de tempo, a disposição de todos (especialmente Liv Ullmann) na encenação, tudo contribui para uma atmosfera onírica, daqueles sonhos que parecem pesadelos mas não te fazem acordar de manhã. Até as roupas (camisolas esvoaçantes, vestidos lisos e compridos) dão um ar fantasmagórico para aquelas mulheres, mas não de maneira aterrorizante, e sim leve, como se flutuassem pelo lugar.
O terror acaba surgindo da matéria prima favorita de Bergman: a superfície do ser humano, os rostos que gosta tanto de evidenciar e os corpos que, quando decide por despir, faz de maneira que qualquer sensualidade seja excluída em prol da vulnerabilidade. Daí uma cena onde a empregada conforta sua patroa (e amante) se torna uma coisa tão íntima e dolorosa que ver aquilo é das coisas mais difíceis da carreira do homem - além de evocar uma simbologia que é reforçada na morte de Agnes.
Como todos os seus filmes, as interpretações são extensas - no caso deste, o vermelho e seu tom sendo um dos principais ponto de análise -, mas duvido que ofereçam qualquer resposta certa, mesmo para o próprio Bergman. A qualidade dele como diretor reside justamente nisso, em criar filmes que até poderiam ser desvendados de um ponto de vista lógico, mas que oferecem na confusão emocional e de sensações sua maior força. Um conto sobre mulheres que conversa sobre seu papel na sociedade, sim, mas também uma dissertação sobre as incertezas do fim da vida e das dores que ficam pra trás.
Mas acho que a coisa mais absurda do filme é como ele não deixa de focar em sua musa mesmo quando ela não “rege” o filme. Apesar de centrado no corpo de Agnes, Gritos e Sussuros encontra na alma da figura de Ullmann a matéria da qual mais se aproveita. A lingerie vermelha, as tentativas de beijo, seu rosto desvendado pela câmera com a granulação tão característica, é ela que evidencia o drama mundano, enquanto Agnes e o filme caminham para uma dimensão desconhecida.
Assim, a figura mítica que move o Cinema de Bergman se torna a dor do físico, que persiste após a morte da irmã, enquanto esta se torna a aproximação desse império de sonhos que representa mais uma peça da relação complicada do diretor com a morte. Que, para ele, foi sempre a maior obsessão, o maior medo, e a maior dúvida.