Crítica | Pixote

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“Pixote” precisa de poucos minutos para chocar o espectador e, mais importante, apresentá-lo ao terrível mundo o qual documenta.

Uma das obras máximas do Cinema Brasileiro, o filme de Hector Babenco jamais apela para o choque como algo barato, romantizado. Tudo que aquelas crianças vivem no filme, vivenciam diariamente ou talvez até de maneira pior. Por isso, ver o pequeno Fernando Ramos sentado à beira de uma cama enquanto seu amigo, não muito mais velho, faz sexo com uma stripper é algo que, àquela altura, já compreendemos como sendo a realidade daqueles meninos.

Seus atores mirins são todos representações de si próprios, crianças em condições desumanas, com qualquer esperança de vencerem na vida ligadas diretamente à algo que talvez nunca sonharam em participar (no caso, o filme). Ou melhor, talvez, como “Pixote” tristemente conta, vencer nunca foi uma possibilidade.

Filmado de maneira documental por Babenco, me pergunto quanto do filme foi planejado e quanto apenas aconteceu. Quanto foi escrito e pensado, e quanto foi apenas revivido. Em certos momentos é como se a câmera simplesmente estivesse ali, enquanto seus personagens vivem em frente dela, em outros o cineasta dá pistas do terror que eles vivem: em um corte brilhante, o editor Luiz Elias vai do responsável pelo reformatório colocando a mão por sobre o ombro de um menino, para o empurrando para dentro de um camburão.

Encontrando beleza na simplicidade, as performances pouco sofisticadas - ou sequer cientes - não apenas tornam o filme “tolerável”, mas remetem a uma infância tirada daqueles meninos. Em uma cena, quando perguntado se gostaria de brincar com o filho de uma traficante, Pixote responde com um sorriso no rosto e inocência na voz: gostaria. Em outra, ele e um dos primeiros amigos que teve conversam casualmente sobre escapar dali e ter uma vida melhor, enquanto espiam Lilica sendo abusada pelos responsáveis pelo orfanato. É como se o filme apenas retratasse a forma como aqueles meninos encaram a vida, como se aquilo que têm não fosse exatamente o suficiente, mas… é o que podem naquele momento.

A própria maneira como aceitam Lilica, sem jamais questionar o fato de que é um jovem trans, mostra como qualquer figura feminina os lembra das mães que não tiveram, mas também os confundem: por serem expostos ao sexo de forma violenta e precoce, tendem a misturar qualquer nova relação com os naturais impulsos sexuais que começam a ter na puberdade. Em uma cena, Babenco coloca apenas um feixe de luz iluminando Tito e Lilica - Tito é gay? Tito é bi? Os dois se gostam? Ou apenas… estão ali?

E apesar de que poderíamos falar de “Pixote” por muito tempo e enxergar tudo que há de errado com o Brasil (e a humanidade) em suas inesquecíveis duas horas, nada resume mais o que ali ocorre do que o trágico menino que dá nome ao filme. Nessas duas horas, Pixote vê coisas que nenhum ser humano deveria ser exposto, mas em seu olhar não há tristeza, rancor ou remorso, apenas uma conformidade que nem sabe que está lá, como se ele fosse condicionado para aquela vida e jamais tivesse qualquer condição de escapar dela. Talvez por isso, a vez que chegamos mais perto de seu rosto é quando está escrevendo em seu caderno que “A Terra É Redonda Como Uma Laranja” em um close extensivo que provocou, em mim, uma resposta emocional gigante.

Também por isso, Babenco escolhe não terminar o filme dando àquele menino, e àquela mulher (a atuação extrapolada de Marilia Pera encontra um antítese poderosa aqui), tudo de que precisavam, em uma das cenas mais bonitas e tristes que já vi na vida. Ao invés disso, vemos Sueli rejeitando aquilo que a tiraria da vida terrível que leva, e o pequeno Pixote caminhando para longe, ao longo das trilhas de um trem, até desaparecer.

Anos depois, Fernando Ramos da Silva, após voltar às ruas, seria morto pela polícia.

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