Crítica | Ataque dos Cães

A masculinidade de Jane Campion

Ataque dos cães é exemplo perfeito de habilidade única da diretora

Qualquer homem (hétero) que caminha por um bosque e vê um grupo de mulheres (atraentes para ele ou não, não importa) tomando banho peladas em um rio pode julgar inicialmente que está sonhando.

Qualquer mulher () que caminha por um bosque e vê um grupo de homens (atraentes ou não) tomando banho pelados em um rio pode julgar inicialmente que está em um pesadelo.

São exemplos assim, extremamente específicos e dependentes de contexto, que Jane Campion cria em seu Cinema. Um estilo facilmente reconhecível, que explora a masculinidade (tóxica ou não) do mundo ao redor de mulheres que servem como nossos olhos.

Se bem que no caso de Ataque dos Cães seria no mínimo discutível julgar que é a personagem de Kirsten Dunst que oferece sua visão para o espectador. Sim, ela vê de longe o envolvimento do filho com o cunhado (?), mas acredito que ela tem, como todos os outros que não a dupla, uma visão limitada e desprovida. 

Mas o poder do cachorro, do título original, afeta a todos. Os que o percebem e os que não.

Na verdade esse jogo de perspectivas nunca é bem amarrado e me parece que a chave para seu entendimento é jogada para o espectador, mas acaba ficando perdida. No começo do filme, Plemons é enquadrado de maneira implacável e estática, enquanto Cumberbatch treme nas mãos da câmera, sendo que é este que está bêbado. Veríamos então como os personagens são/estão, e não o que veem? Porque, então, tanta câmera subjetiva? De Cumberbatch observando Dunst, a esta sendo fuzilada com os olhares dos convidados, é um filme que ressalta o poder da perspectiva, visivelmente representada pela metáfora de seu título.

Mas por mais que seja difícil desvendar por quem vê o filme, isso se torna mais um jogo que dialoga com as ambiguidades temáticas. O real problema acaba ficando por conta da estilização. Assim como em O Piano, fica claro que os arredores exercem poder sobre aquelas pessoas. Mas naquele filme Campion não precisava mostrá-los toda hora para sentirmos que estavam ali. O que torna a primeira metade do filme algo até bem Nomadlandesco, com uma lentidão que não se justifica pela falta de conexão e foco narrativo. Acredito que haja também uma certa pretensão bem característica de filmes de festival recentes e que me fez virar o olho algumas vezes.

A saturação das cores misturada com sombras ostensivas, esse apreço por planos abertos fetichistas pela estética, a encenação malvadinha (o bullying e as bolas do boi) e esquisitinha que consegue a proeza de tornar um casal tão adorável como Dunst e Plemons em um buraco negro de química. Me parecia um filme feito para aqueles que vivem na sociedade de Coringa.

Mas dois momentos no meio da projeção me fizeram emprestar a ela minha atenção, e não mais apenas a curiosidade (não resisti, foi mal).

Um deles conversa diretamente com O Piano, onde as notas dissonantes de Dunst são contrapostas com o violão sacaninha de Cumberbatch, um momento que poderia levar para infinitos desdobramentos e que abrem as possibilidades que o Cinema de especificidades de Campion pode proporcionar. Outro, já é mais simples: Dunst e Plemons, focados no centro do quadro, ensaiam uma dança e parecem ali encontrar o amor que dividem fora das telas.

“É bom não estar mais sozinho”, ele diz antes de Campion enquadrá-los pequenos em meio às montanhas. Apesar de terem com quem dividir, a solidão ali segue.

E é aí que Campion parece tomar as rédeas do filme (estou um piadista hoje). A malvadeza da sociedade ultra-masculina começa a ser desafiada pela habilidade única da diretora em tornar a sequência descrita no começo do texto em algo quase etéreo. Homens que voltam a ser garotos, descobrindo o mundo ao seu redor, se divertindo com cavalos e troncos, e cuidando de seus corpos (o banho, a revista). Logo, a perspectiva se revela em Peter (um jovem que entrou na fila pra ser esquisito e de lá não mais saiu)? Novamente, acredito que não, mas fica visível que o longa, apesar de mostrar atos de masculinidade, os faz com uma interpretação quase que bem delicada.

Com um simbolismo claro na feição da corda em paralelo aos laços criados por ele e Phil, a brincadeira se torna desvendar se esses laços são paternais, fraternais ou homoafetivos. Os planos abertos dos dois cavalgando para longe (ala John Ford?), uma frieza calculista que não precisa ser vista para ser revelada (o coelho), o plano-contraplano provocativo e que inverte o papel de dominância (Brokeback Mountain?), a idolatria a Bronco Henry que conversa obviamente com os John Wayne de Ford e Hawks, um tipo não mais possível no Cinema contemporâneo e que tem em Phil um legado, mas também uma desconstrução. A construção da relação dele com o rapaz é gradativa, e culmina no ponto que mais se esperaria de Campion.

Na última meia hora, só conseguia rir ao imaginar machões assistindo ao filme e acreditando estarem vendo um comentário sobre tempos passados, quando na verdade este é um dos filmes mais desafiadores da pose em 2021 - e não deixa de dialogar com Cry Macho de Eastwood. Lembra também Sangue Negro, principalmente pela semelhança entre Cumberbatch e Day-Lewis, atores que mostram ter confiança absoluta no próprio talento. O Doutor Estranho, no entanto, parece encaixar com o resto do filme apenas da metade em diante, mas não adianta, é favoritaço na época de premiações.

Porém se essa eloquência torna a segunda metade envolvente, as trevas inerentes àqueles personagens isolados só podem ser realmente sentidas no plano final, que termina por revelar Ataque dos Cães como um filme que faz jus à tudo que constrói, mesmo que termine com mais incertezas e ambiguidades que parecem até destinadas aos finais explicados do YouTube.

Ataque dos Cães tem uma tradução que não faz absolutamente nenhum sentido, e se revela como a maior piadinha do Cinema em 2021. Longe de ser transformacional, mas só por ser um filme completamente diferente do que a maioria deve perceber - enfim, a perspectiva - já merece apreço.

7.8

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