Crítica | O Último Duelo
O PRIMEIRO DOS DOIS FILMES DE RIDLEY SCOTT ESSE ANO É SURPREENDENTE.
Baseado numa história real sobre o último duelo entre cavaleiros realizado na França, esse filme aproveita um conto do Século XIV para apresentar uma tese sobre o presente e apesar de cavalgar uma estrada tortuosa é bem sucedido muito mais sendo um drama intimista que um épico medieval, ainda que seja um pouco dos dois. Apesar de Ridley Scott ter dirigido o meu filme favorito fazia muitos anos que um projeto dele não me empolgava e mesmo que não seja seu carro-chefe em 2021, “O Último Duelo” já cria expectativa para o que ele ainda pode apresentar. Com roteiro escrito por Matt Damon, Ben Affleck e Nicole Holofner e trazendo em seu elenco não só as duas estrelas-roteiristas como Adam Driver e o grande destaque Jodie Comer, vemos uma narrativa ser apresentada de maneira fragmentada em três partes, na perspectiva dos protagonistas e, apesar disso, ter problemas éticos é de fato impressionante que enquanto filme tenha funcionado e não apenas isso, o roteiro convence a gostar dele puxa o espectador para o drama e as intrigas entre os personagens justificando a sua longa duração. Com destaque para a fotografia, a ambientação de época é um pouco genérica mas não rouba a atenção necessária para atmosfera burocrática da corte muias vezes acentuada em oposição à violência do campo de batalha.
Ambientado durante a Guerra dos 100 anos no reinado de Carlos VI, “O Último Duelo” conta a história de Jean de Carrouge (Damon), Marguerite de Carrouge (Comer), que são casados, e Jacques Le Gris (Driver), membros da nobreza da Normandia sob o Conde Pierre (Affleck), “O Último Duelo” é sobre uma mulher, Marguerite, que decide não ficar calada após ser estuprada por Le Gris, a sua acusação leva seu marido a demandar um julgamento por duelo e enfrentar seu antigo rival numa arena em que a vontade divina decidirá sobre quem é culpado. O roteiro tenta fazer parecer que estamos vendo uma história por três visões pois se divide em três contos intitulados “a verdade de Jean de Carrouge”, “a verdade de Jacques Le Gris” e “a verdade, de Marguerite de Carrouge” mas acredito se tratar de duas narrativas interligadas mas diferentes: a da rivalidade entre Carrouge e Le Gris e a das violências sofridas por Marguerite sob os dois homens e a sociedade. Cada um dos protagonistas possui personalidade bem definida pelo que vemos e pelo que não vemos das partes que narram, não só o texto mas também o ritmo imposto pela edição e o enquadramento mudam de acordo com quem está conduzindo sua respectiva parte.
Num momento em que temos cada vez mais produções dispostas a fazer comentários sociais, muitas focadas na pauta de gênero, “O Último Duelo” é capaz de se destacar pela ousada proposta de tratar o próprio caso descutido como um julgamento, a conclusão de cada capítulo é justamente o depoimento dado perante ao rei e à igreja sobre o caso por cada um, e o que vem antes é a construção até a o duelo decisivo. Por isso também quando revemos a cenas os personagens agem de maneira diferente em cada versão, nota-se nitidamente que tanto Jean quanto Jacques retratam Marguerite como perdidamente apaixonada por eles, com sorrisos e olhares românticos e que nos dois casos a personagem não tem nada além diso. No capítulo dela vemos que seu casamento é destacado pela necessidade da sua família e os costumes da época, vemos também que além de homens, sua vida é marcada pelas suas amigas, pelo gosto que tem em administrar as terras do marido e pelos conflitos com a sogra, nada disso havia sido visto até o momento em que ela toma a voz da história para si. E isso é uma diferença importante no estupro e suas repercussões, na visão de Marguerite temos acesso não só ao terror que é a violência sofrida por ela, contrastando com uma versão romantizada de De Gris, como também à reação agressiva de seu marido, na visão dele, em outra oposição, é mostrado uma reação compreensiva de sua parte bem como um pedido da esposa para que Jean se vingue do antigo rival. Apenas quando Marguerite possui o controle da trama vemos que seu marido a agride e depois decide por conta própria matar De Gris se referindo como o ato do inimigo o afeta sem considerar a experiência de sua esposa.
É impossível dizer que “O Último Duelo” não consegue cumprir a proposta ambiciosa do roteiro, muito pelo contrário, a execução é fenomenal, muito mais do que se esperaria de uma premissa tão complexa, mas há coisas na própria ideia que me inquietam um pouco. No capítulo de Marguerite é nos contado que só ali veremos a verdade de fato, isso é ressaltado pelo letreiro em tela e não há dúvidas quanto a isso, o que me incomoda então é a tentativa de apresentar os outros dois capítulos como “a verdade segundo o narrador”, dando a impressão que está em jogo uma disputa de verdades, quando assumidamente não é, dessa maneira pode se pensar que ao tomar os argumentos de De Gris ou de Carrouge o roteiro enfraquece aquilo que apresenta como a verdade real, não se trata de um duelo de versões, mas de duas visões distorcidas contra uma verdade indiscutível do ponto de vista narrativo. Além disso, por escolha ou não do filme, os dois personagens masculinos soam falsos e superficiais, aparentemente algo deliberado, então tomá-los como protagonistas pela primeira metade da história torna essa parte difícil de assistir, é um risco muito alto para deixar a mensagem importante para o final. E independente da escolha ou não, Matt Damon e Ben Affleck especialmente soam desconfortáveis falando o texto escrito por eles, algo que talvez devesse causar desconforto mas a passa uma impressão maior de má atuação, algo capaz de enfraquecer o filme antes do público chegar na mensagem relevante.
Todos possíveis problema de ritmo desparecem completamente no ato de Marguerite, no qual Jodie Comer dá um show de atuação e interpreta a melhor personagem de “O Último Duelo” pegando para si todo holofote do filme da história, quero já cravar: seria uma loucura não indicá-la ao Oscar do ano que vem, se destaca também o trabalho de Ridley Scott, depois de tantos anos alguns clássicos, alguns bons filmes e outros nem tanto, o diretor mostra que ainda tem cartas na manga e aqui executa uma história bastante complexa com qualidade que justifica o status de lenda do cinema carregado por seu nome, algo talvez inesperado pelos últimos filmes dele. A proposta do roteiro apesar me incomodar um pouco é ousada o suficiente para ser um destaque por si só, reconheço a dificuldade imensa que seria acertar em cheio com ela e dentro disso acho que temos o mais próximo possível. A mensagem do filme, apontando uma trama sobre o machismo, o patriarcado e seus problemas ambientada numa época em que as mulheres não eram consideradas sujeitos pela lei e pela igreja é bastante necessária especialmente quando feita numa produção de tanta qualidade, onde os méritos artísticos e políticos se equiparam.