Crítica | Em Trânsito
*alerta de spoilers moderados
A voz de Georg, interpretado por Frank Rogowski, é uma marca que ele carrega em toda sua carreira. E vida. Nascido com lábio leporino e com alterações na voz provenientes da condição, o personagem divide com o ator uma origem da qual nunca ouvimos… ou melhor, nem sabemos direito quem Frank é, mas ao final de “Em Trânsito” é difícil não lembrar da maneira e do tom com que aquele homem se comunica sem simpatizarmos com a situação na qual se encontra.
Baseado em um livro de 1944, o longa dirigido por Christian Petzold é de uma curiosidade impar: criando anacronismos na maneira de se vestir dos personagens principais em relação aos figurantes, tornando ausente a presença de celulares que facilitariam sua vida e trazendo o contexto político daquela época para algo próximo do atual, o cineasta cria um mundo que pode ser chamado de atemporal. Por si só, essa escolha, refletida de maneira sutil no design de produção, gera curiosidade, mas quando em dialética com a narrativa se torna latente a mensagem que “Em Trânsito” procura passar, a de que o mundo evoluiu apenas em suas aparências, mas no fundo segue sendo o mesmo.
Olhando por esse lado, faz apenas sentido que não tenhamos qualquer ideia de quem são de verdade aquele seres humanos, presos em uma cidade da qual tem logo que escapar para não serem pegos, se sua situação não faz com que você com eles simpatize, é como se Petzold sucedesse desde cedo em sua abordagem. Também por isso, a voz de Georg, que parece ter de se esforçar para se fazer ser ouvido, o torna uma figura ainda menos ofensiva, e quando canta uma música sobre voltar para a casa para a viúva, surda, do amigo morto, somos convidados a sentir o mesmo que ambos, que não fosse o pequeno Driss jamais entenderiam o que o outro diz.
Mas se o menino poderia ser apenas um recurso para humanizar os personagens adultos, Petzold acerta em torná-lo também uma vítima do sistema que subjuga os diferentes, e ao tirá-lo abruptamente da narrativa ele responde novamente à mise-en-scène que cria: as ruas de Marseille, uma cidade grande e pomposa, nunca parecem vivas, mas sim como um ponto de parada para pessoas que nunca quiseram estar ali. As calçadas estão constantemente vazias, enquanto o trânsito parece implacável e chega a sugerir, mais de uma vez, que o fim de qualquer um pode ser encontrado ao tentar atravessar a rua. E não apenas Driss, mas todos aqueles que se envolvem com Georg têm fins pouco convencionais, mas nada comparado à sugestão espectral da última cena, a qual Petzold constrói desde cedo com a imagem de Paula Beer - atriz que, por não entregar a idade, casa perfeitamente com a ideia de estagnação e transição do longa - perambulando pela mesma cidade fantasma da qual Georg, e também nós, queremos tanto sair.
Apesar de simples em seus movimentos de câmera, que jamais chamam atenção demais para si, é impressionante a habilidade de Petzold e da editora Bettina Böhler em criar distância entre aqueles personagens com cortes que mostram eles se olhando de cima para baixo, ou com panorâmicas sutis que mostram eles se afastando, algo que evidencia a impessoalidade daquele local mesmo que fotografado com cores quentes por Hans Fromm. E essa distância permanece mesmo quando essas pessoas se aproximam, pois sabem que o que quer que vivam ali é algo passageiro, e todas as demonstrações de afeto vem de uma necessidade de conforto que, é claro, jamais vem.
Ainda assim e de certa maneira, “Em Trânsito” e seu realizador tem a mesma necessidade de passar desapercebido de seus personagens, pois é como se Petzold fizesse questão de mostrar como aquela experiência não a ele, ou a nós, pertence - algo que cria uma rima forte com o fato de que Georg anda por aí com nenhum pertence exceto os documentos de um homem morto. Mas ao deixar marcas emocionais em quem quer que assista, é como se o filme rompesse com a própria ideia em prol de fazer valer sua mensagem. Também por isso, considero a narração em off desnecessária, explicativa em excesso e que parece dar todas aquelas semi-histórias que vemos na mão de um único homem. Logicamente, seria a única e última maneira de conhecermos a bondade de Georg e as tragédias de Marie, Richard e a dona dos cachorros, mas ainda assim, centralizar o olhar é algo que não bem trai o filme, mas dá a ele um narcisismo que de nada combina com o que assistimos.