Crítica | A Metamorfose dos Pássaros
Memória.
Vivemos na Terra sob leis que inventamos, normalmente influenciadas por religiões criadas do ar, com base em nada exceto a fé em algo que se iniciou sabe se lá como. Construímos uma sociedade com valores que julgamos corretos, e por vezes temos nossas vidas definidas pela forma como sucedemos ou não nessa sociedade tão abstrata, que insiste em se apresentar, e pensar de si mesma, ser algo concreto e absoluto. No fim, todos morremos. Não apenas eu e você, mas todos. E o que resta é a memória.
Mas e quando todos - todos mesmo - se forem (algo que vai inevitavelmente acontecer em um futuro distante)? O que resta?
“A Metamorfose dos Pássaros” jamais tenta responder, ou compreender, ou sequer contempla essas questões, sendo que sua dissertação sobre memória e seu impacto nas vidas daqueles por ela afetados se resume a um caso específico, da família da diretora Catarina Vasconcelos que cria em seu primeiro longa uma obra prima irretocável, e um dos filmes que mais me marcaram em toda a vida. E embora a experiência tenha sido uma de introspecção, de olhar para a minha casa e perceber tudo que um dia existirá apenas de maneira afetada pelo esquecimento e pela saudade, se torna impossível não deitar a cabeça no travesseiro e começar a viajar.
A beleza deste filme, no entanto, reside justamente na delimitação que propõe a si mesmo: acompanhamos histórias que resumem três gerações de uma família por meio de cartas, e ao conhecer e compreender cada uma daquelas pessoas sem nunca as ver falando para câmera, sinto como se Catarina tivesse sucedido em criar uma nova forma de linguagem dentro do Cinema. Uma que cria ligações em nossa cabeça, das palavras que ouvimos entoadas com dor, esperança, paixão e saudade, com uma amalgama de imagens que passam a fazer sentido conforme entendemos o que significam. Penas, navios em garrafas, quadros, móveis, mãos. Logo, uma árvore caída tem uma força devastadora, um telescópio no mar, mirando o horizonte, evidencia uma distância sufocante, e um menino coberto de folhas nos relembra da imperceptível, mas implacável passagem do tempo. Sinto como se Eisenstein fosse amar este filme, pois se duas imagens entrecortadas podem gerar efeitos emocionais, aqui sua junção provoca um efeito dominó que faz cada quadro se preencher de significado.
Acho que nunca vi algo tão bem decupado, onde a sequencia de cenas (pois aqui até planos individuais são compostos de forma a contarem histórias inteiras por si só) só é equiparada pelo brilhantismo do design de som. Mais do que isso, amparada por este, pois em diversos momentos sons ambiente e vozes se diluem uns nos outros, e outros nos uns, de maneira que até quando duas pessoas falam conseguimos entender o que dizem, mas mais importante, sentir que, no fundo, sentem as mesmas coisas. E seria medo a palavra exata para o sentimento que aqui impera? Medo do desconhecido, medo do futuro, medo do tempo. Medo de ter sua vida resumida à memórias, à momentos que, como disse antes, sabemos que são afetados e que representam símbolos, que seguem a nos influenciar, ou assombrar, mesmo que só tenhamos suas essências presas em nossas mentes. Ou talvez seja amor a resposta, e como molda essas memórias ou, novamente, nos faz ter medo pelo que pode acontecer àqueles que amamos, ou a nós mesmos.
E Catarina utiliza essas memórias como objeto de estudo para tentar entender de onde veio: em uma cena, ela evoca Varda em seu “Os Catadores e Eu”, ao vasculhar uma mão e se perguntar qual parte daquilo tem mais partes daquela que se foi. Qual parte de si reside a maior parte de sua mãe, que agora existe apenas como… memória. Em outro momento, o pai de Catarina, Jacinto, percebe que a primeira palavra que disse na vida foi também a última que disse para sua mãe, Beatriz. Ali, eu já estava acabado, chorando, e revisitando memórias que sabia ainda nem terem sido feitas, e pensando em como me sentiria quando destas me lembrasse.
“A Metamorfose dos Pássaros” é uma experiência reveladora e, ao acompanhar esta jornada, íntima e vulnerável, pela vida desta família, somos capazes de enxergar passado e futuro em nossas mãos, mas quando tentamos apanhá-los é como se fugissem de nós e nos lembrassem de nossa própria vulnerabilidade e inutilidade perante a metamorfose ambulante que somos, obrigados a ver nossa liberdade como pássaros voar lado a lado com o fato de que, um dia, seremos apenas aquilo que nos tornou.