Crítica | Na Sombra da Lei
“Vamos caçar uns leões”.
É até difícil colocar em palavras tudo que este filme de S. Craig Zahler faz. Tanto, que senti vontade de escrever um “Beyond”, algo que talvez ainda faça no futuro, mas o que vem a seguir há de bastar.
2018 foi um ano cheio de alegorias no Cinema, e também de filmes que desafiam a fé. Acredito que “Na Sombra da Lei” faria ótima sessão tripla com “Fé Corrompida” e “A Casa que Jack Construiu”, formando uma escadinha: se este traz o tema apenas em seu final e de um ponto de vista mundano, o de Von Trier sugere durante toda a sua projeção para ter um final mais ambíguo, enquanto o de Paul Schrader aborda o conceito desde o título.
Mas o mais fascinante de “Na Sombra da Lei” - que teve uma tradução terrível para o português (o original é “Arrastado Pelo Concreto”) - é que por mais de duas horas vemos uma história que tem apenas em sua periferia qualquer desenvolvimento mais filosófico, por meio da motivação da dupla de policiais em fazer o que tem de fazer. O que prende é a tensão absoluta que Zahler consegue instalar, esta advinda da atmosfera claustrofóbica e desesperadora em qual mergulha seus personagens, nos fazendo acreditar que aquela é a única saída para cada um deles, tornando toda a perseguição algo ainda mais enervante.
Incrível como ele consegue aliar a “lentidão”, comum para filmes menos comerciais, com sugestões que beiram o absurdo do Cinema de ação. Em sua primeira cena, vemos um sexo sem qualquer envolvimento e, momentos depois, Henry (Tory Kittles) fecha a porta do carro e vê pelo reflexo uma luz vermelha em seu apartamento, algo que não poderia ser mais óbvio em sua sugestão mas que funciona justamente por isso. Divertido notar também como a fotografia amarelada que acompanha Henry dá lugar à azulada quando vemos os policiais, em um detalhe pequeno mas que - como a tal teoria das cores fala - mostra como ambas as narrativas são complementares. Assim como a frase com que iniciei este texto, há várias pequenas “galhofagens” e homenagens ao gênero durante o filme (as próprias cores lembram “Tráfico”, por exemplo, e por favor, temos Mel Gibson perseguindo alguém) o que acaba sendo subvertido pela forma como Zahler filma as cenas de ação.
Brutal e com uma câmera inabalável, que não foge da violência - mas passando do limite do gore em apenas um momento -, esta surge não como diversão, e sim como um fim que sabíamos ser o único possível para aquelas trajetórias que se cruzam, o que amplifica seu impacto e nos impede de adivinhar o que vem a seguir. As longas esperas, inclusive, servem para nos colocar mais ainda ao lado dos protagonistas: enquanto vemos os dois debaterem e sentirem as motivações por trás de seu plano, sentimos o peso do tempo que eles sentem. Mas não que “torçamos” para eles, acredito ser impossível imaginar um final feliz para um filme tão desolador como este, que, ao meu ver, valida tudo com uma frase que Henry direciona para Brett (Gibson) quando este diz tentar evitar a tentação à todo custo: “O detetive é um padre”. Ali, fica ainda mais evidente a disparidade econômica que o longa acusa, o impacto que esta causa na vida de indivíduos de origens diferentes, e como a honra daqueles homens é verdadeira, mas também maleável para atender apenas às suas necessidades.
(spoilers moderados a seguir)
Vejam, Brett e Henry são extremamente similares, ambos convivem com medo do “sexo” que envolve filha e mãe, enquanto o (ou a) outro componente da família tem uma deficiência física que torna ambos os únicos capazes de proteger suas respectivas famílias. E nem se pode acusar tais condições de serem artifícios baratos, pois se há algo que o filme não é, é dramático, seja por sua abordagem quase estéril para a violência, seja pelo roteiro em si. Vide o final dado à Anthony (Vince Vaughn) e Biscuit (Michael Jai White) que aterra os breves momentos de humanização que estes trazem, e a aterrorizante cena onde Jennifer Carpenter é assassinada logo após vermos a também preocupante cena dela com seu filho, esta um momento quase pedestre da narrativa, que não devia importar de nada, mas que joga para nós também uma espécie de culpa por, primeiro, julgar a superproteção doentia da mãe, e depois sentir por seu desfecho - enquanto tendemos a pouco ligar pelas outras vítimas.
E talvez desde Chigur eu não tenha temido tanto um vilão como aqueles bandidos sem voz, rosto ou qualquer traço de humanidade. De certa forma, assim como o icônico vilão dos Coen, eles representam a inevitabilidade do destino. E da morte.
Também propício para toda essa interpretação é o confronto final, em meio a um lugar escuro e desolado, onde não há rota de fuga e, apesar de os “heróis” terem a vantagem - a manipulação espacial de Zahler aqui nos permite entender tudo que ocorre no centro da ação, mas sem esquecer do que se esconde em volta dela -, naquele momento já estamos na mesma batida que eles em seus últimos momentos. Não que acreditar seja algo que deixem de fazer, mas o simples fato de estarem ali mostra que já recorreram às suas últimas esperanças.