Crítica | Elle
A Michelle de Isabelle Rupert é uma mulher difícil.
Propositalmente fria, rígida com seus subordinados, insensível com seus amigos, tóxica com sua mãe, ela dá todos os traços de uma sociopata que enxerga nas outras pessoas apenas sacos de carne dotados de uma, ou outra, utilidade que fazem de sua vida mais suportável. Porém, assim como todo iceberg, o que está por baixo é uma mulher insegura com a própria personalidade que, por não saber como expressar seus sentimentos, se entrega à impulsos inexplicáveis que tendem a reger suas relações. Porém, como toda grande atriz, Rupert a interpreta com tamanha complexidade que é impossível traçar qualquer mapa realmente verídico de quem esta mulher realmente é por baixo de toda sua casca grossa.
Dirigido pelo holandês Paul Verhoeven dez anos após seu último trabalho, “Elle” conta a história desta mulher tão desafiadora que, vítima de um estupro, começa a desconfiar daqueles à sua volta enquanto descobrimos a natureza de suas relações com amigos, família, colegas e amantes.
Sem adotar nem a postura clássica de um thriller investigativo - uma pena, pois as poucas cenas propositalmente misteriosas mostram competência cirúrgica do diretor em evocar tensão -, nem de uma alegoria para assuntos tão atuais e polêmicos como a cultura do estupro - mesmo assim, o diretor evita qualquer tipo de fetiche nas cenas de violência, pois -, “Elle” é única e exclusivamente sobre sua personagem e sobre a obscuridade que vive adormecida na índole de praticamente todos os seres humanos. E, nisso, Verhoeven é mais do que eficaz, sempre a seguindo com a câmera e ditando o andar da narrativa de acordo com suas ações e reações, fazendo com que os próprios espectadores enxerguem os personagens secundários como Michelle os enxerga, dispositivos, por mais que todos sejam escritos como seres humanos complexos e cheios de camadas. Michelle apenas não quer, ou tenta, ou consegue, enxergar.
Seu filho (Jonas Bloquet) é um jovem inseguro e perdido no mundo, e ela não consegue demonstrar seu carinho - real - por ele sem alfinetar muitas de suas decisões. Seu ex-marido (Richard Casamayou) é vítima de um misto de ciúmes e desdém pela mesma. Sua mãe (Judith Magre) serve mais como uma lembrança dolorosa de seu passado do que de uma presença querida. Nem sua melhor, e talvez única, amiga, interpretada de forma excelente por Anne Consigny, escapa de suas decisões equivocadas. E aí, nesta relação em específico, entra o traço mais marcante da personalidade de Michelle, a forma como lida com sua própria sexualidade.
Pois, se ao final do filme - e em uma cena central - há uma leve sugestão de seu interesse no sexo oposto, me pergunto se não seria justamente isso que a prendesse dentro de seu impenetrável casulo, pois fica mais do que claro que suas interações com seu amante e com seu próprio estuprador - o qual a identidade não revelarei, claro - são problemáticas e, como a própria diz, doentias. Se a dão prazer? Não é o que parece, mas talvez ela nem ao menos saiba o que realmente a satisfaz, pois esteve experimentando com as pessoas erradas a vida toda. E, novamente, esta é apenas uma interpretação para desvendar sua complicada personalidade, que pode também ser lida como uma mulher forte e empoderada, dona da própria vida, mas acredito que tanto Isabelle, como Verhoeven, a enxerguem muito mais como uma pessoa que, por mais que independente, precise de um carinho que nunca teve (o que me lembra, até, de Chiron, de “Moonlight”, também de 2016).
E se este texto pareceu muito mais interpretativo do que técnico, é por que “Elle” é feito sob medida, com decisões que, apesar de eficazes, são convencionais, pois há pouca identidade na cinematografia, ou destaque especial para a trilha sonora, para que roubem os holofotes da interpretação magistral de Rupert. Isso não faz do filme menos competente, mas talvez o impeça, sim, de alçar voos além do que os proporcionados por sua atriz principal, pois por mais estranha e magnética que seja esta sombria história, ela nunca toma papel central na narrativa.