Crítica | Selah And The Spades (Amazon)

critica selah and the spades

Os melhores filmes que você pode ver na vida são aqueles que te fazem parar. Simplesmente parar. Seja por um breve momento ou por dias.

A estreia de Tayarisha Poe, “Selah e os Espadas”, fez isso comigo.

E percebi logo cedo este efeito, por mais que ele tenha se instalado apenas horas após seu final. Agora, o porquê dele ter sido tão forte é algo que ainda estou digerindo. Em seus intensos 97 minutos, acompanhamos o dia a dia de uma escola interna, onde a personagem do título lidera uma de cinco facções e precisa de alguém para substituí-la após se formar. Cada uma das facções é responsável por algo: cola em provas, bilhetes para os pais, distribuição de drogas. Esta última, liderada por Selah.

Subvertendo seu gênero de maneira que nunca vi antes, Poe, que também roteirizou o projeto, faz duas coisas que a grande maioria dos filmes adolescentes não conseguem: nos convencer que seus personagens são, de fato, adolescentes, e não transformar as drogas, as festas, o sexo em apenas uma consequência dessa fase. Inclusive, chega a ser estranho o quanto todos, e especialmente Selah, levam a sério a hierarquia na escola. Suas reuniões são feitas com cadeiras improvisadas em um bosque na propriedade, seus dados anotados com canetas coloridas em um caderno, seus contratos sendo simples acenos consensuais onde um sabe que foi recrutado pelo outro. Mas, ainda assim, é como se suas posições fossem de suma importância, como se caso uma simples engrenagem falhasse, o sistema todo cairia.

E isso pode, e deve, afastar muitos espectadores, mas basta pensar um pouco e perceber que, ao contrário da postura preguiçosa que a maioria dos filmes tentam empurrar, todos fomos assim um dia. Quando você tem 15, ou 16, ou 17 anos, a menor gota d'água tende a se tornar uma tsunami, seja ela uma traição de seu melhor amigo, uma tarefa incompleta, uma nota baixa. Por isso, caso se irrite com as atitudes de Selah, lembre daquele seu colega, ou de você mesmo, pois eu consigo me lembrar que o show de talentos anual (chamávamos de Sarau, nome de idoso, eu sei) era tido como uma obrigação moral e, diferente dos filmes, aqueles que mandavam bem eram aplaudidos (eu, sempre de pé, claro).

Pois algo que Poe consegue extrair perfeitamente é como existem, em todas as esferas da vida, pessoas conformadas e confortáveis em serem si próprios, enquanto outras não aceitam o fato de não serem os melhores. Ela, a cineasta, claramente se encontra no segundo grupo, por mais que jamais desrespeite o primeiro, mas seu talento para o cinema é algo que pode ser percebido com imensa facilidade. Conduzindo o filme com um ritmo pesaroso e extenuante, ela cria cenas visualmente arrebatadoras, sempre focadas no preto e nas sombras, passando a câmera por ângulos e cantos que parecem dar vida ao colégio, e ainda conferindo violência sem ter de mostrar qualquer ato dela - prestem atenção em uma conversa entre Selah e Paloma, em um cômodo escuro, com fios vermelhos pendurados a sua volta como que as cortando. Em diversos momentos, chegamos a temer pelo que iria acontecer a seguir. Em poucos conseguimos respirar aliviados.

Contando com um elenco praticamente desconhecido, fora pelo impressionante Jharrel Jerome (“Moonlight”, “Olhos Que Condenam”) que aqui constrói um tipo muito comum no Brasil, diga-se, Poe faz com que todos convençam - fora um overacting de Ana Mulvoy-Ten que pode vir a destoar do resto -, em especial a brilhante Celeste O’Connor, capaz de soar alternativa, introspectiva e leviana - como a grande maioria dos adolescentes são - com naturalidade. O arco dela, inclusive, é o melhor do filme, pois avança de uma aluna nova, tirando fotos do que lhe mandam, para uma aspirante a líder, deslumbrada com o “poder” que pode alcançar. Mas mesmo em meio a um elenco talentoso e personagens multifacetados, Selah surge como a protagonista e antagonista da própria história, em uma performance memorável da jovem Lovie Simone. Não que suas atitudes sejam louváveis, sendo que ela demonstra um claro desvio de conduta e até traços de sociopatia, mas conseguimos sentir a pressão em cima dela, seja pelo posto que ocupa, pelo senso de obrigação e excelência que coloca em si própria, seja pelo fato de ser, assim como todos fomos, somos ou seremos, adolescente.

Logo, o filme se transforma em um profundo estudo de personagem, do qual saímos sabendo o suficiente sobre aquela menina para condenarmos suas atitudes, e nos preocupar na mesma medida, como se fossemos nós seus melhores amigos. De certa forma, me senti responsável por Selah, talvez por ela me lembrar a mim mesmo quando mais jovem e, por isso, o filme me pegou. Pois percebi que não sou mais.

E, assim, por 97 minutos, foi como se assistisse a algo que me fizesse voltar no tempo e julgar tudo como se estivesse assistindo a meus próprios erros. Que, bem o filme lembra, não foram poucos.

9

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