Crítica | Ida

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Se qualquer coisa aprendi até agora na vida, é que devemos viver o máximo possível, pois, independente de crença, fé ou ideologia que sigamos, a grande probabilidade é que temos apenas esta vida para sermos quem somos agora, com todos os nosso acertos e erros, desejos e anseios. Independente do que aconteça após nossa morte, ou do medo que esta provoca em tantas pessoas, jamais deveríamos deixar de viver seja por tal medo, seja por qualquer outra razão.

Em certo momento de “Ida”, a tia da jovem que dá título ao filme - uma noviça prestes a prestar seus votos para o convento onde viveu durante boa parte da vida - lhe aconselha a consumar seus desejos proibidos antes de se entregar a Deus por completo, de outro modo, não estaria fazendo nenhum sacrifício ao escolher uma vida de privações.

É em cima de conflitos como esse que Paweł Pawlikowski, e a co-roteirista Rebecca Lenkiewicz, constroem “Ida”, filme que não poderia ter um nome mais apropriado. Durante seus curtíssimos 82 minutos, somos convidados a conhecer melhor esta jovem, mas jamais somos capazes de decifra-la por completo - algo que me deixa completamente frustrado, pois seus cabelos ruivos, seus olhos curiosos e esguios e as covinhas presentes nos desconfortáveis sorrisos que tenta, encantam mesmo que enxerguemos todo seu mundo em um melancólico preto e branco.

Nesse sentido, a obra é um deleite para qualquer cinéfilo, pois todos os seus elementos giram em torno daquela confusa jovem, que jamais fora dada a chance de buscar uma vida “normal”. Em uma conversa, quando perguntada se já esteve em certo lugar, ela responde: não estive em lugar nenhum, com um quê de ironia que só não se torna cômico pela tristeza de tal constatação. Perceba como Pawlikowski constantemente a enquadra de maneira heterodoxa, emulando as tendencias subversivas da New Wave, seja em cantos isolados da tela, seja com parte do rosto cortado, mas principalmente surgindo pequena e sempre com algum objeto sobre sua cabeça (uma cruz, uma marquise, frequentemente quadros e pinturas), como que limitando seus espaços tanto físicos como mentais. E é curioso como os objetos mais recorrentes são justamente quadros e pinturas, algo que interpreto assim: ao final de nossa vida, o que fica é o legado que deixamos para trás, são as coisas que fizemos para mudar a vida dos outros, e nada melhor representa essa sensação de imortalidade do que a arte. O plano onde um quadro claramente fica entre Ida e sua tia, torna quase óbvia esta constatação.

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Sua tia, inclusive, serve quase como a bússola moral - e política - do longa, interpretando uma judia responsável pela morte de diversos dos seus enquanto atuava como procuradora, procura em relacionamentos carnais aquilo que jamais encontraria, algo que preenchesse o eterno vazio pela perda da família. Ver-la redescobrir o amor na sobrinha é lindo, ao passo que ver-la sucumbir ao perceber que não fora capaz de fazer o mesmo por ela é algo que corta o coração. Porém, é naquele momento quando ela descobre onde a irmã e o filho foram enterrados que vemos toda a dura carapaça que desfila se desmoronar, ao passo que Pawlikowski consegue o impossível ao, ao menos, emular parte do desespero da cena final de “A Escolha de Sofia”, mesmo que nos limite a apenas imaginar a crueldade e inevitabilidade da situação. A interpretação de Agata Kulesza é construída em torno de um estereotipo, que a própria faz questão de desconstruir ao passar por todo o arco emocional da personagem.

Mas, sim, é a Ida de Agata Trzebuchowska que rouba todas as atenções, mesmo construindo sua personagem de maneira minimalista, reservada. Em uma cena onde sua personagem inicia um princípio de flerte com um jovem músico, Pawlikowski deixa o plano rodando para que possamos captar a linguagem corporal de ambos se conectando. Um olhar aqui, um toque no braço ali, e a forma como a jovem parece começar a desabrochar é, literalmente, encantadora.

Aliás, o trabalho da dupla responsável pela fotografia Łukasz Żal, Ryszard Lenczewski - que compõem o filme de maneira iluminada, mas frequentemente esterilizada de qualquer sinal de conforto ou felicidade - se mostra crucial ao final da projeção, quando a jovem parece finalmente se libertar das amarras que colocara em si mesma. Ali, quando ela dá seus primeiros passos no salto alto - uma metáfora para o início de uma nova vida -, quando deixa seus cabelos soltos e eles refletem a luz do sol - é quase possível enxergar o vermelho -, quando se permite sonhar com algo diferente do que a vida de restrições que estava por escolher, não pude evitar de deixar um sorriso tomar conta do meu rosto, pois apesar de conhece-la a tao pouco tempo, ver alguém descobrindo a beleza da vida sempre será uma experiência tocante.

Por isso, seu final me doeu tanto. Pois se a morte é algo inevitável, a vida deveria ser uma série de escolhas que damos a nós mesmos, e ao ver Ida retornando para o convento, além de constatar que o que vimos fora apenas a ponta do iceberg de sua complicada psique, senti uma tristeza profunda por saber que talvez nem a própria saiba o quanto de si ainda havia para descobrir. Ou, como diz o único personagem que chegou perto de conhece-la de verdade: o efeito que ela provoca.

“Ida” é um assombroso retrato da crueldade do ser humano, da privação religiosa e da complexidade do ser humano. Um estudo de personagem tão profundo como inconclusivo, sobre uma jovem tão cheia de dúvidas e sentimentos inexplicáveis que jamais seremos capaz de decifrá-la por completo. Uma constatação que poderia ser positiva, tivesse o filme terminado poucos minutos antes. Após pensar muito, continuo odiando fortemente o final do filme, mas não posso dizer se essa não é, justamente, a intenção.

Pelo menos uma coisa me é certa, lembrar de Ida será, sempre, algo doloroso. e, talvez, inevitável.

9.9

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