Crítica | Marighella
Chefe Comunista, Assaltante de bancos e grande apreciador de batidas de limão, Carlos Marighella é uma das figuras centrais para compreendermos o Brasil do Século 20.
Hoje, 04 de novembro de 2021, dia que se completam 52 anos do assassinato do intelectual e militante comunista brasileiro escrever sobre um filme que aborda os eventos que levaram a sua morte nas mãos da repressão da ditadura civil-militar brasileira transforma sentimentos conflitantes em relação a obra digirida por Wagner Moura em anseios pessoais para traduzir o que “Marighella” representa na trajetória cinematográfica do Brasil e a maneira como os nossos heróis foram retratados ao longo dos anos. Trazendo Seu Jorge no papel principal, o longa poderia ser também chamado de “O Velho Marighella” uma vez que apenas o último capítulo da imensa biografia do comunista baiano é filmado aqui, essa escolha pode ser criticada por si só ou não, mas ela foi feita e isso talvez tenha diminuído ao invés de engrandecer o protagonista do filme. Sem dúvidas Moura se preparou intensamente para sua estreia atrás das câmeras, demonstrando um domínio da técnica cinematográfica que chama atenção especialmente nos truques estilísticos vinculados ao genêro de ação, sua carreira de ator foi marcada com parceiras de um proeminente brasileiro diretor do gênero, José Padilha, que parece ter influenciado na maneira como o estreante decupa suas cenas. Mas se a intenção intelectual de dar um novo testamento para as ações do personagem é louvável, o roteiro ao tentar fazer isso se torna um pouco piegas, o que por um lado pode ser o desejo da história por outro faz o ritmo do filme ser por vezes muito lento e no fim das contas, “Marighella” parece ser desnecessariamente longo.
A película retrata os acontecimentos dos anos 1968 e 1969 na vida do militante comunista brasileiro Carlos Marighella (Seu Jorge) e seu envolvimento com a última organização que participou a Aliança Libertadora Nacional (ALN), grupo clandestino de guerrilha urbana em resistência à ditadura brasileira de 1964, além das relações políticas e das ações de luta armada do personagem, o longa aborda ainda aspectos da vida pessoal de Marighella, presentes na narrativa através de sua companheira Clara (Adriana Esteves) e do seu filho. Apenas alguns flashbacks do ano de 1964 nos mostram a prisão do protagonista e também o rompimento do personagem com o partido comunista brasileiro por divergências de método revolucionário, o PCB não aderiu à luta armada no Brasil durante a ditadura. O filme rapidamente pula para as tramas e a organização da ALN durante, mostrando algumas das ações mais comuns do grupo, assalto à bancos e a um trem, a execução um capitão do exército norteamericano no Brasil e tangencia o sequestro do embaixador dos EUA Charles Burke Elbrick (retratado em “O Que É Isso Companheiro?”), além disso constrói o antagonismo entre o grupo e Lúcio, delegado interpretado por Bruno Gagliasso que é uma representação do torturador do DOPS Sérgio Fleury, que investiga e persegue os membros da ALN. Boa parte do roteiro foca nas relações entre os militantes comunistas, os dois dirigentes mais velhos Marighella e Almir, interpretado por Luiz Carlos Vasconcelos representação de Joaquim Câmara Ferreira, ganham muito destaque e o grupo de jovens estudantes que atuam conjuntamente.
Confesso que a qualidade de “Marighella” me impressionou bastante, por se tratar de um diretor sem experiência prévia com uma história complexa na mão eu não imaginei que Wagner Moura seria capaz de executar essa produção da maneria que conseguiu, a direção de cena se destaca, como a que Marighella vai encontrar seu filho na Bahia e o menino percebe que é uma emboscada, conta com muita tensão construída de maneira não-verbal. As sequências de ação são também feitas com elegância e movimentos de câmera precisos que não permitem o espectador a se perder na cena, algo que infelizmente não é tão comum no cinema brasileiro, a construção do Rio, de São Paulo e de Salvador na década de 60 também é excelente e certamente potencializa o que o filme tem de melhor. Talvez uma das coisas que mais se destaca é o debate racial em torno da figura de Marighella realizada tanto nas redes sociais e debates paralelos ao longa quanto evidenciados pelo próprio roteiro, Carlos Marighella era negro, porém naquilo que Wagner Moura chamou de “síndrome de ‘Escrava Isaura”, o audiovisual brasileiro tem tradição de embranquecer as figuras históricas, costume que existe no país desde a independência no Século 19 quando Dom Pedro II buscava forjar uma história branca para o Brasil, uma das práticas estabelecidas era representar os heróis nacionais sempre como brancos. Por isso a escolha de representar diversos diálogos e conflitos entre Marighella e a polícia brasileira com marcadores racistas feita por Moura precisa ser elogiada.
De maneira análoga, vejo problemas do ponto de vista técnico e do ponto de vista ideológico na história do filme, algumas vezes eles se complementam. Uma das principais críticas negativas que o filme têm recebido é por ter um ritmo lento e parecer ser longo demais, acho que o principal motivo para isso é justamente uma escolha frgamentada de histórias sendo contadas, em muitos momentos “Marighella” parece optar por um roteiro de episódios isolados ligados por alguns elementos isolados. Do ponto de vista narrativo o único personagem com um arco completo é o vilão, algo bem comum em séries de TV, e por isso há espaços de tempo em que se tem a impressão de que a ação demora a acontecer ou de estarmos vendo coisas repetitivas e desncessárias. Há uma noção de nacionalismo na luta contra a ditadura que parece um pouco infantil e brega, em muitas cenas Carlos Marighella afirma seu amor pelo Brasil e como tudo que faz é pelo seu país, o líder é de fato conhecido pelos seus valores nacionalistas, na época era parte fundamental das doutrinas leninistas que se reivindicasse uma disputa por um projeto de nação em todos setores da sociedade inclusive na burguesia, mas a minha crítica é que o filme usa para inflar a figura do seu protagonista como se suas ações violentas na luta contra uma ditadura precisassem ainda ser justificadas por valores morais. E é nesse caminho também que enxergo problemas na maneira como Fleury é retratado, ele é o antagonista do filme, seu arco é prender o protagonista, ele mata e tortura e sente que isso é o certo porque faz com a mão da justiça. O primeiro ponto é o perigo de tentar criar paralelo entre uma pessoa que usa o aparato do estado para coibir liberdades e outra que reage a isso, as duas ações são violentas, mas não são paralelas pois o delegado executa o terrorismo de estado. Da perspectiva cinematográfica, o personagem de Gagliasso é retratado de maneira muito semelhante ao protagonista de “Tropa de Elite”, Capitão Nascimento, que é um anti herói, então por mais que não seja a intenção do roteiro, as câmeras capturam uma essência de herói em Fleury, o que é contraditório com a mensagem do filme.
Com acertos e erros, “Marighella” é um filme que chamou muita atenção, primeiro por ter sido censurado pela Ancine e ter passado dois anos sem ser lançado no país por isso, depois por retratar um período que voltou a ser motivo de disputa na esfera pública brasileira a partir da visão de um herói brasileiro que jamais deixou de habitar o imaginário como personagem fundamental da nossa história. Os erros acredito que passem pela falta de experiência de Moura que mesmo assim não tem se escondido e virou porta-voz do filme para o Brasil dando entrevistas em diversos veículos enfrentando as polêmicas e defendendo a visão de mundo que acredita e que tentou colocar na sua obra, mesmo que nem sempre tenha conseguido. Acredito que mesmo assim tenha contribuição importante para o momento político que vivemos e o fato de buscar isso de maneira tão aberta já é louvável, reabrindo o espaço das produções sobre a ditadura brasileira no cinema que tiveram uma alta no começo dos anos 2000 e hoje talvez se façam ainda mais necessárias e colocando a arte em necessária oposição ao atual governo com discurso politizado e responsável. Por isso que mesmo com críticas, “Marighella” é um dos filmes importantes do momento em que ele foi produzido e lançado.