Crítica | L'atalante

A jornada como dor e arrependimento, revelação e reparação.

Em seu único longa antes de morrer precocemente, Jean Vigo constrói um filme poético sobre as dores individuais de uma vida compartilhada.

Com uma produção conturbada que envolveu disputas pelo corte final e a saúde deteriorada de Vigo - que morreria pouco após o lançamento do filme de tuberculose, aos 29 anos -, o longa tomou contornos míticos ao longo dos anos. Vigo teria morrido no exato momento que um cantor de rua teria começado a cantar "Le chaland qui passe", uma música popular na época que estava inserida no filme.

Inicialmente mal recebido quando lançado em 1934, “L’Atalante” passou por uma reavaliação crítica e hoje é considerado um dos grandes filmes da história do Cinema. Na Sight & Sound de 2012, ficou em décimo segundo lugar e sua influência na Nouvelle Vague torna seu legado algo sentido até hoje não só na França, mas mundialmente.

É um filme especial pra mim, também, por ser o primeiro que assisti inteiramente em Francês, com o detalhe de que sei apenas meia dúzia de palavras do idioma. Como não encontrei nenhuma cópia com legendas funcionais, decidi que encararia e a experiência, ainda assim, foi valorosa. A narrativa é até bem convencional (o que me ajudou): um capitão de navio se casa e decide morar com a esposa na embarcação, mas a relação logo se torna conturbada.

Se passando em um cenário marginalizado e com acontecimentos que se desenrolam de maneira gradual e reativa, é visível a influência do filme na Nouvelle Vague, principalmente em Truffaut. Não deixa também de ser semelhante à “Limite”, tanto pela relação direta com a água como pela ideia de poesia visual criada por Vigo, romantizando momentos seja com um carinho genuíno, ou com imagens mais diretas. Quando o jovem convida Juliette para sair com ele, ele está de pé mas em uma elevação menor, quase como que colocando ela em um pedestal, e Vigo a filma em meio ao céu claro com um leve plongé que a engrandece. Na próxima vez que vemos Jules, no entanto, ele está na linha do olho, emburrado, mundano.

Outro momento intenso, e só poderia, é quando Juliette tem de recorrer à indignidade para poder re-encontrar o marido, que a deixou em mais um rompante de raiva. Conforme caminha pelo corredor estreito, é como se tanto as paredes como os olhares invadissem seu espaço e jogassem sombras características do Expressionismo em sua vida.

Essa opressão externa é forte principalmente no navio, com seus espaços internos apertados e os externos rodeados, obviamente, por água. Essa claustrofobia que força um contra o outro atinge ápices diferentes, seja nos desencontros provocados pela raiva, ou na cena onde Jules pula no rio, um momento visualmente implacável por representar todos os sentimentos conflitantes que o atormentavam. É uma cena também restauradora e reveladora, como se a água que os oprimiu, isolou e separou fosse a resposta para os motivos que levaram a isso.

Ao se abraçarem e retornarem para a jornada tortuosa que a vida no Atalante proporciona, Jules e Juliette acenam para o amor impagável que o Cinema tanto ama, mas é impossível não traçar um paralelo geral com a própria vida de Vigo. No fim, temos uma jornada só de ida, o que importa é o que fazemos e sentimos durante.

Por isso, e apesar de contar com decisões inconsequentes e impulsivas de seus personagens, que se afetam por viverem uma realidade difícil e instável, “L’Atalante” nunca deixa de ser essencialmente humano e, portanto, falho.

9

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