Crítica | Sangue de Pantera (1942)

O CHARME DAS TREVAS

Jacques Tourneur faz um filme onde a libertação feminina encontra forças nas sombras da repressão.

Apesar de influente - e, dependendo da maneira de como se vê, um clássico -, Sangue de Pantera acaba sendo ofuscado por Fuga ao Passado na filmografia de Tourneur. Se aquele é um dos principais exemplos do Noir nos anos 40, este acaba sendo um filme muito menos dependente e referente à sua era - ao ponto que atemporal até seria um adjetivo interessante.

Irena, uma designer de moda recém casada com um bom moço, acredita ser descendente de uma tribo de Pessoas Gato, que se transformam em panteras quando excitadas, o que faz com que seu marido comece a questionar se tomou a decisão correta e a se interessar por sua colega de trabalho. Se a premissa parece até boba - principalmente quando explicada -, Tourneur extrai as óbvias conotações sociais envolvendo a feminilidade de maneira que as metáforas se justificam.

Existe um charme inerente na primeira metade do filme. Além de Irena ser uma mulher estilosa, seu apartamento é luxuoso de uma maneira quase opressiva, com decorações em excesso que tornam o lugar estreito e tortuoso, propícios para as sombras que se tornam tão importantes na mise-en-scène de Tourneur. É um lugar que, apesar de representar sua moradora, parece sufocá-la dentro da própria natureza, como se vivesse sempre entre os modos que a sociedade imprime e a libertação que começa a ser sugerida logo na primeira cena, quando vemos uma pantera negra enjaulada. Essa tentação constante não surge como algo que Irena deve rechaçar, mas vem com um charme difícil de resistir.

Em uma cena que diz muito, ela olha de cima para o homem com quem está se apaixonando, como se enxergasse nele essa oportunidade de libertação. A câmera no entanto não nos mostra o ponto de vista dele, mas um enquadramento bem simples dela e de seus olhos cheios de encanto. Uma câmera que inclusive segue esse encantamento, caminha com ela, e sempre que a vemos próxima da pantera, é como se estivéssemos dentro de sua própria consciência. Uma mulher “boa”, com medo se tornar “má”. Se você está do lado certo, vai torcer por isso.

Enquanto o simbolismo é bem óbvio, acaba tomando dimensões maiores ao ajudar a construir o mito por trás da história do filme. A cena com a “bruxa” no restaurante sendo o exemplo mais vivo disso, mas há sugestão em tudo que envolve Irena e suas dúvidas crescentes. O crítico Kim Newman teoriza que o filme é um precursor para O Bebê de Rosemary, algo que senti ao assistí-lo. Mas enquanto o filme do Polanski usa uma abordagem que caminha para uma inevitável catástrofe, Sangue de Pantera nos faz maravilhar com a possibilidade da libertação. Os feitiços do filme não são nunca tóxicos - por mais que assustem -, mas quase revitalizadores quando se percebe que a toxicidade está nos arredores.

A MULHER PELA SOCIEDADE, A EMANCIPAÇÃO FEMININA

Kent, um cara até legal, se apaixona por Irena pelo mesmo motivo que nós iríamos - as cenas dos dois são bem enfeitadas pela trilha sonora, quase pisando em um melodrama/rom-com -, mas ele não vê o que nós, como espectadores, vemos. A montagem faz um trabalho excepcional em separar os dois, alternando entre as investigações dela por seu sub-consciente e as dúvidas dele quanto a ela. Enquanto ele se sente tentado pela normalidade, ela se visita no zoológico, mostrando como Kent também é alguém raso e comum, como sua pequena auto-avaliação sugere. Ele nunca parece se apaixonar por sua colega de trabalho, mas ela é o protótipo de mulher independente que o homem gostava em 1942: inferior profissionalmente e submissa emocionalmente.

Econômico em sua encenação, Tourneur excede quando as pessoas estão sozinhas (algo que também ocorre em Fuga ao Passado): o crítico brasileiro Philippe Leão diz que o que não vemos re-significa o que vemos. A sugestão nas sombras se torna medo, e quando Alice mergulha no breu, ou na piscina, as cenas não apenas assustam, mas mostram que mesmo seguindo as normas, a mulher segue sujeita aos mesmos perigos daquelas que as desafiam.

Mas a coisa mais doce sobre o filme é como Irena encontra combustível para seus desejos nas trevas que a cercam. O que faz sua morte algo ainda mais devastador, que soa tão relevante em 1942 como hoje, 80 anos depois.

A sugestão, o mito e a realidade se tornam um, mas quando Kent diz que “ela nunca mentiu para nós”, já é obviamente tarde demais.

9

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