Outra Hora Entrevista | Sérgio Alpendre
EXPECTATIVAS MODERADAS
Em entrevista ao Outra Hora, Sergio Alpendre comenta sobre cinema, distribuição e crítica
OH: A nível nacional, mundial e hollywoodiano, como você enxerga o cinema nesse início de década? Já é possível perceber alguma tendência governante, ou cineastas que parecem liderar esse momento em específico?
SA: Acho que tem um fator que complica um pouco a análise desse período: a pandemia. Filmes que estavam quase prontos para serem lançados em 2020 foram segurados, e até mexidos, para lançamento após a pandemia. Outros, de 2019, que iriam estrear em 2020 só estrearam em 2022 ou 2023, mas são, na verdade, de 2019, ou até de 2018.
Eu diria, contudo, que percebo uma tendência a voltar a um tipo de direção mais classuda, com a câmera se movimentando em trilhos ou fixada num tripé. A loucura da câmera tremendo sem muito critério parece ter passado, a não ser em um ou outro filme que ainda insiste nisso. O padrão das produções da Netflix, a despeito da mediocridade da maior parte delas, serviu ao menos para isso.
Outra coisa é a duração dos filmes, que parece ter ficado maior mesmo, em média.
OH: A década de 2020 (tomando esse ano como ponto de partida e não 2021) com certeza tem um capítulo importante na pandemia, você acredita já ser possível perceber algum legado (artístico ou industrial) da pandemia no modo como pensamos cinema?
SA: Até hoje tem aparecido filmes em que as pessoas usam máscaras. Isso é interessante. Esses filmes ficarão obviamente datados, podendo até ser bons, ou mesmo muito bons, porque, para mim, filme datado não é necessariamente ruim.
Mas é curioso como muitos filmam as máscaras no desejo de serem contemporâneos e em 2025, 2026 já estarão completamente datados. A não ser, claro, que a gente saia de uma pandemia e entre em outra (não duvido nada que isso possa acontecer, mas espero que demore mais um pouco).
OH: Como você enxerga a produção de cinema brasileira hoje? Mudou muito com a entrada do streaming? Tem algum/a autor/a que se destaque nesse começo de década?
SA: Os que se destacam vêm da década anterior: Adirley, André Novais, Paula Gaitán, Gabriel Martins... Nesta década, talvez só o Daniel Bandeira, que fez o ótimo Propriedade, desponte como um destaque. Mas entendo também que todos esses nomes sejam destaques do que de melhor tem sido feito no cinema brasileiro da década de 2020.
Acho que o streaming mudou mais o cinema americano. No cinema brasileiro não tenho sentido tanta mudança assim, a não ser nas séries, que não acompanho de perto.
OH: Como enxerga a política de autores em Hollywood nos últimos 10 anos? A relevância dos Estados Unidos para o cinema é menor hoje do que foi antigamente?
SA: Sem dúvida é menor, mesmo se pensarmos em blockbusters. Com De Palma praticamente afastado de Hollywood, eu diria que só sobraram dois grandes autores, Clint Eastwood e James Gray, se eu não tiver esquecido de nenhum. Tem gente interessante filmando, como Kelly Reichardt, Dan Sallitt, além de veteranos que ainda fazem bons filmes, como Scorsese e Michael Mann. Mas grandes mesmo, de quem esperamos grandes filmes, acho que só os dois citados acima.
OH: Como você avalia a importância do crítico de cinema em tempos de influenciadores digitais? Ainda há espaço para conversar, debater e aprender cinema?
SA: Talvez nunca tenham sido tão importantes e ao mesmo tempo tão desprezados como nestes tempos. Hoje é praticamente impossível ter uma carreira de crítico profissional. Mas a crítica desvalorizada provoca uma explosão de maus críticos. O cinema tem decaído também por causa disso.
O cinema brasileiro, por incrível que pareça, é uma exceção, porque é melhor hoje do que há dez anos, mas a crítica não acompanhou esse processo, o que pode prejudicar o desenvolvimento do próprio cinema brasileiro, entregue de vez ao oba-oba de influenciadores ou críticos meramente publicitários. Ao mesmo tempo, essa mudança tem sido muito discutida. Vamos ver se o jogo vira novamente, mas é bem difícil.
O neoliberalismo venceu em todas as frentes e a crítica atrapalha o jogo deles.
OH: A nível pessoal, quais filmes desse começo de década te agradaram mais? Quais apontam caminhos interessantes para o cinema? Há alguma obra ou diretor que esteja se destacando?
SA: Poderia citar Onde Fica Esta Rua? (2022), filme português, Mal Viver (2023), o melhor do díptico de outro português, o João Canijo. Tem o Trio em Mi Bemol (2022), da Rita Azevedo Gomes. Além do Vitalina Varela, que na verdade é de 2019. Mas o cinema português continua se destacando, como na década passada.
Kaurismaki fez um de seus melhores filmes, então talvez mereça ser destacado apesar de ser um diretor que despontou nos anos 80. Tem o John Wick 3 (2024) também, a meu ver, o ponto máximo do cinema de ação neste século. Falam muito do cinema indiano dos últimos anos, mas sinceramente o pouco que vi não me animou a ir atrás. Talvez ainda faça isso, mas me parece uma vertigem. Vamos ver.
OH: Pra fechar, uma pergunta mais ampla: o que você espera do cinema para os próximos anos?
SA: Espero que resista aos predadores, e sei que vai resistir, mas sem muita expectativa de que vá para algum lado em especial. Deve continuar bem diverso, com uma pluralidade de vozes que nunca teve no século 20.
Sérgio Alpendre é crítico, professor, jornalista e pesquisador. Escreve na Folha de S.Paulo desde 2008, e no site Leitura Fílmica desde 2020. Já colaborou com veículos como Bravo, Cineclick, Movie, Foco, UOL Cinema, Taturana, Teorema, Zinematógrafo, entre outros. Fundou e editou as revistas Paisà e Interlúdio. Foi crítico da Contracampo entre 2000 e 2010. É pós-doutorando em cinema pela PUC-RS. Doutor pela UAM e mestre pela ECA-USP. Ministra cursos de cinema e crítica por todo o país.