Outra Hora Entrevista | Arthur Tuoto
SOBRE EXPOENTES E NICHOS
Em entrevista ao Outra Hora, Arthur Tuoto compartilha sua visão sobre o ecossistema do cinema contemporâneo
OH: A nível nacional, mundial e hollywoodiano, como você enxerga o cinema nesse início de década? Já é possível perceber alguma tendência governante, ou cineastas que parecem liderar esse momento em específico?
AT: Em um aspecto negativo, eu acho que a principal tendência dessa e das últimas décadas é uma polarização da produção industrial norte-americana em poucos estúdios e em grandes filmes. O modo como a Disney vem dominando tudo nos últimos anos, incluindo os filmes da Marvel, é bem preocupante tanto no sentido de uma falta de variedade da produção como também de um domínios das salas.
O ponto positivo é que a produção mundial está muito mais diluída e existem outros mercados e nichos interessantes (tanto de cinema comercial como de um cinema "de arte"). Os cinemas produzidos nas diferentes regiões da Índia talvez sejam os que mais demonstram uma força própria munida de um aparato industrial potente.
OH: A década de 2020 (tomando esse ano como ponto de partida e não 2021) com certeza tem um capítulo importante na pandemia, você acredita já ser possível perceber algum legado (artístico ou industrial) da pandemia no modo como pensamos cinema?
AT: Eu acho que a pandemia acelerou processos que já vinham acontecendo. Principalmente no sentido do domínio dos streamings e dos estúdios investirem nessa experiência doméstica ao diminuírem a janela de intervalo entre cinema e lançamento digital, além dos investimentos por parte dos estúdios nos próprios streamings ou em parcerias com grandes streamings. O maior marco dessa década e das próximas com certeza será esse domínio dos streamings e também, me parece, uma migração dos espectadores para as séries de TV.
Em termos artísticos, ainda é difícil definir algo por completo. Mas eu sinto que alguns cineastas buscam um retorno ao blockbuster clássico como uma resistência natural ao domínio da Marvel e do blockbuster de alto estímulo (Top Gun 2, franquia Missão Impossível, Avatar, seriam exemplos dessa "resistência") e também sinto uma nova tendência do terror que busca juntar aspectos mais gráficos (um terror clássico) com aspectos "atmosféricos" (o fatídico "pós horror").
Tanto filmes de grande estúdios como também obras independentes de terror tendem a flertar com esses dois lados ao mesmo tempo.
OH: Como você avalia a importância do crítico em tempos de influenciadores digitais? Ainda há espaço para conversar, debater e aprender cinema?
AT: Ainda existe espaço, mas se tornou uma experiência de nicho. O crítico como esse "comentador cultural" está morrendo. Os influenciadores estão tomando esse espaço mainstream que antes era dedicado a uma espécie de jornalismo cultural. Quem quer ler crítica, agora, vai atrás dessa produção mais específica.
O ponto negativo disso é que a figura do crítico como um profissional vai desaparecendo. O que temos, no lugar, são autores que constroem um espaço próprio para divulgar sua produção. E aí precisam descobrir novas formas de monetizar isso.
OH: Comparando com nomes da Hollywood clássica (Ford, Hawks, Hitchcock…), ou mesmo dos anos 60-80 (De Palma, Carpenter, Scorsese…), os atuais “grandes” diretores norte-americanos fazem poucos filmes. Nos últimos dez anos, Tarantino e Fincher tem dois cada, por exemplo. A que você acha que se atribui essa baixa produção de nomes que não deveriam ter problemas para financiar projetos?
AT: Depois dos anos 70, principalmente após o estabelecimento da fórmula do blockbuster high concept, a mentalidade de Hollywood mudou e os estúdios passaram a pensar em grandes projetos (ao invés de diluir a produção). Além disso, o espectador médio contemporâneo é alguém que, hoje, busca por mais estímulos.
Então existe uma espécie de retorno a um cinema de mercado de atrações que não dá tanto espaço para produções mais clássicas. Vários desses grandes cineastas da atualidade (mesmo os que fazem parte do mainstream) preferem fazer trabalhos mais artesanais e menos estimulantes.
OH: Como um dos maiores expoentes de Hong Sang-soo no Brasil, como você avalia a importância dele para o cinema atual? Acha que é possível que seus filmes sejam mais amplamente reconhecidos no futuro?
AT: Atualmente ele ainda ocupa uma posição de nicho. Mas acredito que o reconhecimento dele tende a crescer ao longo da história. Eu vejo ele como uma espécie de Ozu anti-mercado. Não é um cineasta tão popular como foi o Ozu, mas propõe um cinema igualmente rigoroso e obcecado por temas específicos que se tornam temas universais. Acredito que, ao longo da história, ela terá a mesma importância do Ozu e outros mestres.
OH: Semelhante à pergunta anterior, mas agora falando em Shyamalan, já é possível perceber uma certa reavaliação de seus filmes no Brasil e em outros países, como você acha que o diretor será lembrado? E qual pode ser o papel dele em um cinema que parece lentamente se desprender do chamado “fetiche da verossimilhança”?
AT: Eu acho que essa reavaliação só existe porque depois de After Earth (2013) e a partir de A Visita (2015), ele começou a fazer obras menos radicais, mas que ainda são fiéis a sua essência. Ele foi obrigado a encontrar um meio-termo para continuar produzindo. Gosto muito dos seus últimos filmes, mas ainda acho que Fim dos Tempos e Dama na Água são seus melhores trabalhos.
Ao nível de um pensamento mainstream, creio que ele será lembrado como um diretor irregular. Ao nível de um nicho crítico e de um estudo mais embasado, será reconhecido como alguém que manteve um trânsito único entre grandes convenções e grandes experimentações. Sobre a questão da verossimilhança, acho que ele próprio foi obrigado a recuar em algumas ideias mais radicais. Ainda que mesmo a sua produção atual preserve um apreço por uma fantasia e por uma relação mais ingênua com o mundo que é bem única.
OH: Sendo um crítico influente no atual cenário da crítica, como você se auto-avaliaria nesse momento da carreira, e como descreveria o “tuotismo”?
AT: Não faço muita ideia. Apesar de eu defender certas tendências específicas que me deixaram um pouco mais conhecido, eu simplesmente tento ser o mais fiel possível a minha experiência ao escrever sobre um filme. Acho que atualmente, principalmente com a internet, existem alguns efeitos de manada que dificultam o pensamento independente. E aí muita gente se vê influenciada por um certo âmbito na hora de escrever sobre um filme. Nesse sentido, eu tento me alienar o máximo possível.
Não assisto trailers e nem leio sinopses dos filmes que quero assistir. Também não leio outras críticas antes de escrever a minha e tento preservar como posso uma perspectiva pessoal.
OH: Pra fechar, uma pergunta mais ampla: o que você espera do cinema para os próximos anos?
AT: Eu acho que uma grande tendência é o aparecimento de cada vez mais nichos. Como a produção mundial hoje é muito mais diluída, existem tantos projetos de produção como de exibição cada vez mais específicos. Está cada vez mais difícil ter uma percepção mundial e global do que está acontecendo. Você pode passar o ano inteiro assistindo apenas a filmes indianos e terá tido um grande ano. Ou pode passar o ano maratonando séries na sua casa. Mesmo os grandes festivais e premiações estão perdendo a importância que tinham nesse aspecto. Acredito que isso irá continuar.
Arthur Tuoto é professor, crítico e diretor de cinema. Exercendo todas as posições de maneira independente, lançou em 2024 seu primeiro longa-metragem, Foram Os Sussurros que me Mataram, e se colocou como um dos nomes mais influentes da nova cinefilia.