Tom Cruise, O Salvador do Cinema
A trajetória do medíocre ator de papéis dramáticos no meio das estrelas de ação que virou a última estrela de ação no meio de atores medíocres
“A música de hoje não tem a mesma alma, eu gosto do velho Rock ‘n’ Roll”
A voz de Bob Seger entoava esse hino contra a modernidade sobre guitarras que poderiam estar em qualquer gravação dos anos 50 quando o mundo se apaixonou por Tom Cruise. Negócio Arriscado (1983) foi há 40 anos, mas em 2024 o ator representa a mesma rebeldia contra as mudanças da indústria cultural que a música que o seu personagem dançava quando Cruise tinha 21 anos.
Se uma década após esse primeiro grande papel ele era a maior estrela do mundo, mais trinta anos passados ele está entre os maiores fenômenos que o cinema já viu com um currículo de incontáveis sucessos comerciais e críticos e, mais importante, uma inesgotável energia em produzir o próximo grande sucesso. Ao longo desse caminho, ele se transformou: de um ator que interpretava advogados, médicos, empresários e personagens que passavam por grandes jornadas emocionais, para o super-espião-soldado-agente-secreto que explode tudo que encontra em seu caminho.
Jovem Tom Cruise: ator sério.
Os anos 80 e 90 foram uma década de reconstrução em Hollywood, os filmes de ação ressurgiram após forte intercâmbio com o cinema de Hong Kong, e Harrison Ford, Mel Gibson, Stallone, Schwarzenegger, Van Damme entre outros faziam os blockbusters que passavam em shoppings, televisão e esgotaram locadoras. Nesse período, Cruise trabalhou com Kubrick, Spielberg, Scorsese, Coppola, Oliver Stone, Rob Reiner e Paul Thomas Anderson. E é essa época que o torna a maior estrela do mundo.
Certo que o ator dialogou com o gênero de ação cedo em sua carreira. Mas seus drama-comédias angariavam prestígio e indicações a prêmios - o maior deles, “Rain Man” (1989). Interpretando, como sempre, o jovem estandarte da ideologia liberal, empreendedora e egoísta, o seu personagem precisa dirigir seu irmão autista, até então desconhecido, de uma ponta a outra dos Estados Unidos para receber a herança deixada por seu pai.
E apesar de Dustin Hoffman ter sido o grande destaque para a crítica em “Rain Man”, a parceria dos dois foi vista como uma passagem de bastão entre duas gerações de atores de personagem. A troca entre os dois, como na cena do cassino, demonstrava a capacidade de Cruise de transitar entre a estranheza e o absoluto carisma sem nunca demonstrar a intensidade que os atores anteriores como De Niro, Al Pacino e o próprio Hoffman tanto prezavam.
Além dos seus icônicos papéis que representavam uma versão muito mais bonita do homem médio norte-americano, sua presença fora das telas era marcada pela personalidade leve e ambiciosa, com um humor rápido e autoconsciente do seu papel como super astro. O talento que chega de surpresa e acaba tomando conta do mundo a sua volta com charme e carisma pode descrever sua carreira, mas também boa parte dos seus primeiros papéis como em Cocktail (1988) ou Questão de Honra (1992).
Esse Tom Cruise não existe mais.
Hoje o ator não concede uma entrevista há mais de 10 anos. Sua presença na mídia é rara e controlada por ele. Sua paixão por atuar em cinema e teatro foi substituída por frases como “obrigado por nos deixar entreter vocês” e “eu gosto de filmes” ditas em vídeos curtos postados nas suas redes sociais ou nos tapetes vermelhos dos lançamentos de seus filmes. Seu senso de humor desapareceu numa figura séria que se sente responsável por empregar milhares de pessoas e entreter milhões - algo que trata como uma missão divina.
E o que a gente sempre soube sobre Tom Cruise é: ele cumpre suas missões.
Desde o sucesso de Operação Valquíria em 2008, o ator só trabalha em grandes produções de ação em que interpreta o mesmo papel, o de Tom Cruise (“Rock of Ages” de 2012 é uma esquisita exceção). Em 2011, o sucesso de Missão: Impossível – Protocolo Fantasma cimenta essa nova fase da sua carreira. Pela primeira vez o fato dele ser seu próprio dublê vira tópico de discussão e material de promoção do filme - também foi a última vez que trabalhou com um diretor que demonstra algum interesse em cinema (Brad Bird), e o último antes de romper sua relação com a imprensa.
Mesmo como estrela de ação ele havia trabalhado com Michael Mann, Tony Scott, John Woo e James Mangold. Mas agora já não cabe mais ninguém que não seja Tom Cruise nos filmes de Tom Cruise, alçado à posição de autor de ação hollywoodiano. Os diretores se tornaram tarefeiros, executores de números de ação que aceitam a vontade do ator de passar 30 dias tentando gravar uma única imagem, como aconteceu em Fallout (2018).
A ideia de que existe coesão e autoria no trabalho de Cruise como ator é consideravelmente mais antiga, Roger Ebert propôs isso em 1991. Na época, porém, o crítico se referia à maneira como os filmes com o ator eram construídos em volta de um personagem semelhante, passando a impressão que estávamos sempre vendo a mesma pessoa se desenvolver em tela.
O salvador do cinema
Existe uma obsessão em Hollywood de salvar o cinema (hollywoodiano). Não sei exatamente do que, mas acredito que de si mesmo. Seja na paixão de Spielberg em Os Fabelmans, na auto adulação de Chazelle em Babilônia ou na rebeldia controlada de Top Gun: Maverick (os três de 2022) há uma constante vontade de arrumar o que há de errado na indústria hoje (para esses criadores são os filmes de herói apesar de nenhum deles expressar isso abertamente).
Maverick é o topo, até agora, da carreira do Tom Cruise, autor recluso e executor de acrobacias. E é também a melhor síntese de tudo que o ator representa. Nos anos 1980, Top Gun era uma paródia assinada por Tony Scott em que Cruise faz seu papel da época (jovem, rebelde, talentoso etc), já em 2022 a história de Maverick é a mais séria entre os mais sérios filmes de ação, mantendo o contraponto com a indústria que o financia e distribui.
A versão nova não tem nada de cinismo ou de sarcasmo, se os personagens estão jogando futebol americano sem camisa ao pôr-do-sol na praia isso é tratado com a mesma seriedade que uma perseguição de aviões em que alguém pode morrer a qualquer momento. Aliás, a missão é construída e executada em cena com tensão inédita para os filmes de Cruise, sempre deixando parecer que o que estamos vendo pode acabar.
A sequência de Top Gun, que ficou dois anos de pandemia esperando para ser lançada, foi feita para ser resumida em uma frase: o cinema voltou. Cruise-Maverick segue sendo o rebelde que age seguindo as próprias regras, mas agora os oficiais da marinha não deixam seu talento ser mais importante que as normas e o querem fora das forças armadas.
É um filme com opiniões contundentes sobre a maneira como o mundo de hoje funciona. A rebeldia de um velho Tom Cruise em fazer esse filme é tratada como a resistência de Maverick aos burocratas que comandam o exército e sua síntese é simples: os filmes de hoje não tem a mesma alma, eu gosto do velho Rock ‘n’ Roll.