Indie, Pela Primeira Vez

Não deveria surpreender que o gênero musical “Indie Rock”, febre da geração noventista, extraia o seu codinome do termo em inglês independent. No entanto, a maioria dos que tiveram sua adolescência embalada por Somebody Told Me (The Killers), Take Me Out (Franz Ferdinand) ou Fluorescent Adolescent (Arctic Monkeys), não fizeram muito caso de pensar criticamente a história ou mesmo o significado deste tal de Rock Independente

Desde Chuck Berry até os Rolling Stones, está consolidado no imaginário popular o espírito independente, e seus derivados de libertação e rebelião, enquanto sinônimos diretos do ethos do Rock ‘n Roll. Seja através de gestos anárquicos que chocam o público ou na criação de comunidades alheias às convenções sociais (como hippies, punks e emos), temos incontáveis exemplos de como este megagênero musical desenvolveu e manteve esta sua fama muito particular. 

A partir desta constatação, por assim dizer, “de base”, é inevitável que surja a questão em relação ao Indie Rock: qual é a necessidade dessa redundância em forma de subgênero? Seria uma independência ao quadrado ou uma crítica ao establishment do Rock?  


A independência e as décadas

Pois bem, o etiquetamento indie se destina a marcar um contraste a tudo que envolve a indústria fonográfica hegemônica do Rock, efervescente desde os primeiros sucessos massivos de bandas como os Beatles e os Beach Boys. Assim, o termo surgiu no final da década de 70, referindo-se a bandas de Punk e Post-Punk que lançavam singles e álbuns de maneira notavelmente independente. Um dos primeiros sucessos desse movimento independente foi Spiral Scratch, EP gravado em 1976 da banda britânica Buzzcocks, que, após um processo de gravação, fabricação e lançamento completamente auto-financiado, rapidamente esgotou sua tiragem inicial.

Vale lembrar que o cenário das grandes gravadoras só viria a inflar ao longo dos anos 80, década representativa do ápice do pensamento dinheirista na indústria da música. Por conta do independente se construir justamente deste contraste, é também durante este momento que irão surgir muitos dos grupos que tiveram influência significativa nas futuras bandas de Indie Rock, como The Smiths e R.E.M. Este último, em seus primeiros anos, fazia parte das comunidades de rock universitário, bares e estabelecimentos noturnos, todos sustentados por agentes independentes locais. 

Um exemplo de ouro para a nossa investigação está na banda The Replacements, que no período correspondente aos seus três primeiros álbuns não passavam de desordeiros, marginais, porém recebidos com verdadeiro entusiasmo nos micro nichos em que circulavam. Após obter sucesso relativo com o seu terceiro e mais aclamado álbum, Let It Be (vale lembrar que ainda dentro deste contexto de independência) a banda foi rapidamente abordada por uma filial da Warner. Isso impulsionou uma carreira frutífera, mas curta, devido à dificuldade de temperamento entre os membros da banda.   

O caso dos Replacements é representativo na medida em que ilustra a ascendente tendência das grandes gravadoras em tentar antecipar cada vez mais quais seriam as bandas e os artistas a futuramente despontar sucessos comerciais - muitas vezes sob a pena de sacrificar o desenvolvimento orgânico de talentos que poderiam florescer melhor caso distantes das métricas, sempre famintas, e dos grandes produtores, sempre formatadores. 

Nesta trilha, no início dos anos 90, bandas vinculadas a gêneros como Grunge, Shoegaze e Britpop, embora fortemente influenciadas pela abordagem Do it Yourself, cada vez mais popular e acessível aos jovens músicos, rapidamente eram cooptadas e começavam a divergir sonoramente em direção ao mainstream assim que davam vestígios de sucesso comercial. (Nirvana, estamos olhando para você).

Saltando para os dias atuais, em que os catálogos rotulam como Indie Rock álbuns altamente financiados como os de The National ou Arcade Fire, fica a questão do quão independentes estariam estes artistas frente ao amparo e prestação de contas a suas respectivas gravadoras - 4AD e Columbia Records. Este tipo de constatação, somada à profusão de artistas enquadrados dentro do gênero, nos faz perceber que o Indie, acabou por se tornar uma parte significativa do próprio establishment musical. Não existe caso mais paradigmático destes paradoxos da indústria e do que é propriamente identificado hoje no cenário musical como “independente” (entre muitas e muitas aspas) quanto o de Billie Eilish. 

Afinal, depois de todas essas considerações, não vale mais jogar o termo direto no lixo? Por mais que a história do gênero se desenhe por saudáveis desvios e por inevitáveis aproximações mercadológicas, é possível pinçar uma variedade de aspectos estéticos que, por incrível que pareça, compõem uma coesão sonora para o ouvinte. Isso nos leva à próxima década, que, embora tenha tido pouco de verdadeiramente "independente", foi definitivamente a mais influente e determinante para a consolidação do Indie Rock no ouvido das pessoas.


O Indie tal como o conhecemos

The Libertines, White Stripes, Interpol, The Killers, Arctic Monkeys e a lista segue longa, com outras tantas bandas com faixas prontamente reconhecíveis, mesmo para as gerações mais jovens: os anos 2000 testemunharam um crescimento e um interesse irrefreável pelo Indie Rock, configurando-se a partir de uma nova geração de bandas identificadas pela crítica musical enquanto Revival Pós-Punk e Revival Garage Rock - estilística musical que pela primeira vez adquiriu amplo apelo mainstream. Melodias simples e cativantes coexistem com sonoridades mais agressivas, ritmos angulosos, vocalizações metálicas e semi-distorcidas. Forçando um pouco a barra, mas não a genealogia, os Strokes não são tão diferentes assim dos Ramones. 

Desde então, o indie, tal como o conhecemos, flerta simultaneamente com dois amantes diametralmente opostos: o pop e o alternativo/experimental. Essa dualidade deve ser vista com muito bons olhos, pois é nesse intervalo entre o comercialismo total e o compromisso artístico purista que reside o legado deste gênero para todas as demais tendências que vieram depois, especialmente nos anos 2010 e 2020. É dessa tensão que surge sua força, identidade e ecletismo.

Contudo, ainda que o legado persista, a sonoridade envelhece - e nem sempre de maneira positiva. Como com qualquer outro gênero que tenha experimentado um boom impremeditado, é possível traçar uma curva de Gauss em que as coordenadas são “quantidade” versus “qualidade”. O ano de 2013 foi paradigmático para analisar esse fenômeno, com lançamentos de Cage the Elephant, The National, Yo La Tengo e, destacadamente, Arctic Monkeys, cujo projeto AM foi um grande estouro - sim, em 2013 o Indie Rock ainda estava nas rádios.

O quinto álbum de estúdio da banda, embora apresente uma estética coesa e faixas incrivelmente enérgicas e empoderadas, revela certo cansaço na sonoridade do Indie Rock dos anos 2000. O projeto funciona quase como uma auto-paródia, exagerando os aspectos que fizeram a fama da banda e do próprio gênero. É um álbum dominado pela força dos singles e… bem… de restos e fillers, seguindo à boa maneira comercial. 

Outros seguiram essa trilha ou tentaram experimentos infrutíferos ao longo dos anos 2010 - década em que a proeminência musical foi para as grandes inovações nos campos do Hip Hop, do Pop e da ascensão de novos gêneros, estes sim verdadeiramente independentes, como Vaporwave e Hypnagogic Pop. Até que o Indie Rock aconteceu, de novo, inaugurando mais um ciclo, for the first time.


Pela primeira vez, mais uma vez

Praticamente marcando o início da década, o debut da banda britânica Black Country, New Roads é tudo o que um entusiasta do “acessível alternativo” que vínhamos falando podia desejar, e muito mais. Formada em 2018, a banda é composta por membros que anteriormente fizeram parte de vários outros projetos na cena musical underground de Londres, rapidamente chamando atenção por suas performances intensas ao vivo e por uma composição sonora de fato única. Hoje, a banda está assinada com a gravadora Ninja Tune, uma gravadora independente bastante respeitada. Ninja Tune é conhecida por apoiar artistas experimentais e de nicho, o que alinha com a estética e abordagem musical do grupo. 

Embora outras bandas inglesas também tenham a sua importância para a recente renascença do Indie Rock, ou ainda, do “Revival do Post-Punk Revival”, tais como Squid, Dry Cleaning e Black Midi, é na ousadia e inventividade de Black Country, New Roads que o gênero conseguiu mais uma rodada de vitalidade. Enquanto seus vizinhos levam mais ao pé da letra a herança dos punks de outrora, mesmo que de forma extremamente talentosa, com destaque à pegada progressiva de Black Midi, apenas Black Country, New Roads se apropria destas influências de maneira antropofágica. 

For The First Time é uma estreia incrivelmente confiante e plenamente realizada, que explora ideias musicais inovadoras, levando o ouvinte a lugares desconhecidos e incorporando uma vasta variedade sonora. Ao mesmo tempo, o álbum mantém uma sensação de simplicidade, urgência e espontaneidade. É um álbum conciso, que não desperdiça nem prolonga seus momentos, sabendo exatamente o que deseja transmitir de si para o seu ouvinte.

Em sua primeira faixa, exclusivamente instrumental, nos é apresentado o desfile mais inusitado de influências sonoras que irá atravessar todo o álbum: 

1) O Post-Punk, marca cativa do Indie Rock, mas que passa a ser ressaltada pela atitude vocal concomitantemente cínica e apaixonada de Isaac Wood, voz anti-pop, anti-poética por excelência, vinculada tanto ao melódico como à frouxidão do spoken word - maneirismo bem representado pelas faixas “Athens, France” e “Science Fair”; 

2) O Minimalismo blocado de Steve Reich, presente nas repetições hipnotizantes como os riffs do violão e das estridencias cronometradas nos violinos da faixa “Track X”; 

3) A inédita e inovadora inserção do Klezmer, música tradicional de festividades e danças judaicas, que embala os momentos mais frenéticos de “Instrumental” e “Opus”, o início e o final do álbum, utilizando uma complexa textura sonora composta por violino, saxofone, guitarra e sintetizadores. Também, por conta da natureza das escalas utilizadas neste estilo musical, é produzida uma saudável dose de dissonâncias e deliciosos clashes harmônicos quando contrapostos aos acordes da tradição rockista convencional; 

4) As estruturas de canção alongadas, desfiguradas e afrouxadas inspiradas pelo Post-Rock, contando com momentos de impacto emocional entregues de forma nuançada e gradiente, arranjos complexos e crescendos dinâmicos,  tais como escutamos na faixa “Sunglasses”; 

5) Ainda seria possível referenciar Krautrock, Art Rock, Noise Rock, Math Rock, e outros tantos “Rocks” que só atestam o espírito de prodígio que perpassa este trabalho de Black Country, New Road.

Do punk independente dos anos 70 aos complexos arranjos do caldeirão de influências do álbum For the First Time, o Indie Rock permanece como uma categoria-testemunho da busca pela autonomia criativa em um cenário musical cada vez mais comercializado. Enquanto as definições de independência e mainstream se entrelaçam, se negam e se afirmam, é essa tensão que alimenta sua vitalidade e relevância contínuas, garantindo que o Indie Rock continue a ser uma voz distinta e influente na cultura musical global. 

Assim, ao revisitar a trajetória do gênero desde suas origens contestadoras até seu estado contemporâneo, fica claro que o gênero é muito mais do que mais um subgênero musical ou mera categorização mercadológica - apenas marcando o que foge e o que fica dentro das margens do mainstream, por exemplo. Mesmo que muitas vezes seja só fachada, o independente na música é e sempre será um campo de experimentação artística que continuará a desafiar as convenções e tentará ativamente se reinventar. E assim seguiremos acompanhando com entusiasmo o que Alvvays, King Krule, Big Thief e Black Country, New Road têm a oferecer a nós e à linhagem do gênero.  

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