A Vanguarda do Cinema de Ação

Texto de Davi Pieri

O cinema blockbuster contemporâneo assumiu, nas últimas duas décadas, uma escolha estética pela aparência de realismo. Jamais um realismo de fato, coisa que, na Hollywood contemporânea, poucos diretores buscaram e alcançaram com honestidade e profundidade - diretores como Michael Mann, Clint Eastwood e Shyamalan (este último apenas em alguns de seus filmes). Já em 2008, a tônica predominante no blockbuster hollywoodiano estava mais para O Cavaleiro das Trevas (Cristopher Nolan, 2008) e bem menos para Speed Racer (Lilly e Lana Wachowski, 2008). Tendência esta que pode ser bem observada na recepção da crítica americana (e brasileira, com muitos copycats dos piores portais de “crítica” gringos) quanto a ambos os filmes, e no sucesso de bilheteria do filme de Nolan, ao lado do fracasso da obra das Wachowski.

O falso realismo que tomou de assalto o cinema de gênero de Hollywood se explicitava cada vez mais como um fenômeno de mercado, alimentado pelos cineastas que o representavam e pela construção de gosto da “crítica” americana medíocre que exigia “coerência” narrativa, visual e um bom-mocismo formal que encontrava solução fácil pela ilusão de sentido e racionalidade vendida aos espectadores.

A questão pseudo racional/pseudo realista do blockbuster contemporâneo apresenta-se, então, em três aspectos:

  • O sentido (racional) da ação, a recusa ao lirismo e mesmo a traços narrativamente épicos (tradicionalmente caros à verdadeira manifestação realista no cinema, como nos filmes de Vittorio de Sica, John Ford, Bresson, Nelson Pereira). A racionalidade da ação não diz respeito à presença ou não de elementos fantasiosos (como um vigilante vestido de morcego), mas a falta de “furos de roteiro”, ao respeito do filme por uma sequência lógica de acontecimentos a revelia de qualquer outro aspecto cinematográfico. Justamente por isso, histórias tão irreais como as do Batman de Nolan e do Homem de Ferro de Jon Favreau foram recebidos de maneira célebre pela mediocridade do pensamento (a)crítico pós-90s.

  • A coerência visual e da ação entre realidade e impressão de realidade no filme, que foi resolvida por Hollywood com a ilusão de “seriedade” (como equivalente à “realidade"), muito marcada pelo apagamento das cores dos filmes, em uma luta por um cinema mais “sério”.

  • A recusa ao melodrama aparente na narrativa - é importante lembrar que filmes como o já mencionado Speed Racer e, antes dele, a trilogia Star Wars de George Lucas foram tão criticados pelo uso explícito de CGI como por tornar manifesto todo melodrama de suas histórias. O mesmo rechaço da crítica e do público aconteceu com Sam Raimi quando este levou a base formal de seus filmes do Homem-Aranha um passo a mais na radicalização do melodrama e da maleabilidade dos corpos pelo CGI em Spider-Man 3 (2007).


DE VOLTA À MITOLOGIA

No contexto já de forte aprofundamento de toda essa tendência, com a Disney-Marvel engolindo todo o mercado com seus superficiais heróis sem cor ou identidade, o ex-dublê Chad Stahelski, em parceria com o até então coordenador de dublês David Leitch, lançam um filme que se insere na cultura de “filmes de quadrinhos” como nenhum outro, sem adaptar diretamente nenhum quadrinho, mas conhecendo melhor que todos os filmes até aquele momento a dinâmica capaz de ligar as duas artes, especialmente quando estas trabalham com os gêneros (ação, comédia, terror, etc.)

John Wick (2014) chega timidamente. Sua grande força está em como Stahelski e Leitch assumem sua natureza enquanto filme de ação, ainda que tomando poucos riscos, mas demonstrando a faísca de um grande talento e interesse para a construção visual espetacular para além do cinismo racional e ilibado da Hollywood contemporânea. Em 2017, Stahelski dobra a aposta com a continuação da série, apostando numa abordagem narrativa-formal que flerta com a estrutura de gamificação experimentada por Paul W.S Anderson em seus filmes de Resident Evil. Mas é com John Wick 3 (2019) que a série começa a galgar seu ápice de liberdade estética e narrativa, compreendendo seu papel mais ou menos subversivo no cinema de gênero hollywoodiano, num mundo no qual Bollywood vinha cada vez mais produzindo grandes espetáculos épicos, que caminhavam na direção da lógica de efeitos diretos no corpo do espectador, e encontravam-se distantes do insuportável pseudo racionalismo ocidental. Com John Wick 4: Baba Yaga (2023), alcança-se o ápice estético-narrativo-dramático desta série.

O filme inicia-se com Laurence Fishburne anunciando o espetáculo, enquanto cita A Divina Comédia:

POR MIM SE VAI À CIDADE DOLENTE, / POR MIM SE VAI À ETERNA DOR, / POR MIM SE VAI À PERDIDA GENTE. / JUSTIÇA MOVEU O MEU ALTO CRIADOR, / QUE ME FEZ COM O DIVINO PODER, / O SABER SUPREMO E O PRIMEIRO AMOR. / ANTES DE MIM COISA ALGUMA FOI CRIADA EXCETO COISAS ETERNAS, / E ETERNA EU DURO. / DEIXAI TODA ESPERANÇA, VÓS QUE ENTRAIS!"

Então, entramos no filme pelas portas abertas de Bowery King, tal como entramos em Rastros de Ódio (John Ford, 1956) pela porta que separa espectador e mito. Se no filme de Ford somos apresentados ao mito do Oeste construído pelo diretor sob a figura de John Wayne e do Monument Valley, aqui vemos o retorno do mito construído na franquia de Chad Stahelski. Os paralelos com Ford continuam na sequência seguinte, no deserto (na qual Stahelski consegue filmar uma sequência de ação neowestern com tamanha inventividade e inspiração que não é vista no cinema americano de ação há décadas). Mas o mais crucial é que o que se estabelece já nos primeiros minutos de John Wick 4 é a dinâmica geral do espetáculo no filme. Primeiro, recorro a Michel Mourlet:

A absorção da consciência pelo espetáculo se nomeia fascinação: impossibilidade de se arrancar das imagens, movimento imperceptível rumo à tela de todo o ser tencionado, abolição de si nas maravilhas de um universo onde até mesmo morrer se situa no extremo do desejo.


A grande questão é que este novo John Wick consegue ao mesmo tempo ser um espetáculo tal como postulou Mourlet, que destina todo o movimento do espectador imperceptivelmente rumo à tela, mas, ao mesmo tempo que absorve a consciência, é um filme com muita autoconsciência sobre seu próprio espetáculo. Isso inicia-se na abertura, mas está igualmente muito presente na grande sequência em que uma rádio anuncia por Paris a presença de John para todo o submundo do crime da cidade enquanto brinca com as músicas que dão o ritmo às verdadeiras danças que são as cenas de ação do filme. Esta consciência espetacular também existe quando Mr. Nobody (Shamier Anderson) assume nosso papel e dá corpo ao olhar do espectador durante o duelo final com Caine (Donnie Yen).

Talvez essa seja uma característica essencial de John Wick 4 enquanto amálgama de elementos de um certo neo-maneirismo tardio, que incorpora os elementos clássicos do espetáculo cinematográfico sob uma perspectiva pós-moderna. Mas a consciência sobre este não é nada sem o espetáculo em si; e aqui, John Wick é o que é pela maneira assustadoramente inventiva pela qual Chad Stahelski é capaz de pensar cada pedaço da narrativa visualmente, jogando de vez ao lixo da história da imagem a dessaturação sem vida, as imagens lavadas, a hiper polidez, seriedade e descaso com qualquer perspectiva de Belo (ou mesmo de Feio) por parte do já aqui mencionado cinema de gênero contemporâneo em Hollywood. O nível de criatividade a que chegam as composições do filme é absurdo. Tudo está muito bem inserido a partir de um pensamento imagético do que é uma narrativa mitológica. Isso porque tudo: todos os planos e enquadramentos, elaboração das set pieces, espacialização, organização da mise-en-scène e demais elementos audiovisuais no universo de John Wick é muito grande, maior do que seu protagonista jamais poderá ser. E é precisamente por isso (e não faltam paralelos nos próprios filmes) que John Wick é Hércules, Prometeu, Odisseu e outros heróis mitológicos. A história de John Wick é a história de um mito, que tal como A Odisseia, faz com que seu herói seja capaz de superar os enormes obstáculos que enfrenta a partir de sua superioridade moral sobre as más criaturas que encontra. É isso que define o final de John Wick 4, no qual a misericórdia de John resulta na derrota do vilão, o Marquês (Bill Skarsgård) por sua arrogância.


DE VOLTA À AÇÃO

Porém, o que confere peso a todo esse universo inventivamente elaborado por Stahelski, é o peso de fato da ação. Embora o filme aparente uma suposta artificialidade nas luzes, nas ações em si, todo o jogo visual e as danças/lutas adquirem impacto pela brutalidade da imediatidade do corpo, da violência, da materialidade na cena. Os sets são espaços reais, não telas verde sem peso espacial (tal como fazem os filmes da Marvel, eliminando a mise-en-scène do jogo cinematográfico), e, nestes espaços, Stahelski trabalha com a brutalidade imediata dos impactos da materialidade sobre os corpos. É por essa unidade que John Wick 4 caminha, na qual o drama, a comédia, a adrenalina, a tristeza e a compaixão são criadas por um aspecto material direto da relação de um corpo com a cena.

O interesse que Stahelski tem pela materialidade da imagem cinematográfica faz com que ele talvez seja um dos cineastas americanos que, nos últimos 20 anos, filmou com mais criatividade, paixão, inventividade e devoção a superfície imediata dos gestos, ações, luzes, das movimentações na cena e que melhor soube inserir na mise-en-scène fotografada o peso material dos objetos em quadro, do comportamento da luz, da sombra e dos atores sobre estes, que a ela é devido; priorizando a percepção imediata da crueldade que todo esse universo megalômano tem sobre o contato direto do corpo das personagens.

Nesse sentido, é um filme de ação por excelência, com tudo o que acredito que os dois melhores filmes do gênero no ano de 2023 (este e Shin Kamen Rider, de Hideaki Anno) foram capazes de oferecer: a ritualização da ação a partir de gestos bem demarcados seguidos de longas sequências coreografadas em prol do espetáculo; e uma diversa gama de referências em torno de uma unidade formal única - e, neste caso, John Wick 4 nos oferece desde ângulos/enquadramentos e composições herdadas do videogame (como a longa cena interior antes da subida de John pelas escadas até a igreja, que muito me lembra o game Hotline Miami), passando pelo western, cyberpunk, o cinema noir, ou mesmo o humor físico de Buster Keaton como nas quedas cruelmente hilárias de John pelas escadarias perto da conclusão do filme, até uma estrutura romanesca (que consegue superar a simplificação gamificada do 2º filme, mas que também, claro, tem narrativamente mais cara de uma pulp fiction do que qualquer outra coisa), na qual a ação do drama se desenrola paulatinamente até o fim sem necessitar dos recursos seriados de ganchos narrativos baratos a cada novo pequeno capítulo estabelecido (algo que Scorsese faz em seu recente filme muito adorado, como parece que qualquer coisa que ele lance a essa altura será). O que importa, sobretudo, continua sendo a imediatidade da ação material na tela sobre a ação do "roteiro".

Além disso tudo, Stahelski aproveita seu espaço de livre experimentação com a ação para até re-encenar sequências de filmes anteriores (como a cena na boate) sob um nível de inventividade ainda maior. E fazia muito tempo que um filme dessa natureza me deixava na ponta da cadeira, com a ansiedade pulsando para saber o que se desenrolará, como senti durante o duelo final - que irei mais longe ainda, a ponto de dizer que é uma cena que não perde em nada para o maior duelo espetacular dos faroestes, aquele que acompanhamos ao final de O Bom, O Mau e o Feio, de Sérgio Leone.

Por tudo isso, John Wick 4 me vem como uma das obras-primas estabelecidas até então nessa ainda iniciada década, onde por enquanto podemos citar pouquíssimos filmes que realmente merecem um destaque especialmente nobre; sobretudo no que tange ao que Hollywood vem produzindo nas últimas décadas.

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