O Cinema Brasileiro na Década 2020

Um filme brasileiro pode ser um fracasso para seu autor, mas não é jamais um fracasso do ponto de vista da continuidade.

Glauber Rocha para Cahiers du Cinema


Este artigo é um recorte rápido das primeiras impressões do cinema nacional na década de 2020. Partindo de produções que se destacaram nesses últimos anos para fazer algumas considerações sobre o que esses filmes apontam como caminhos possíveis e impossíveis que nosso cinema pode tomar.


É curioso pensar nesse tema e lembrar que 2019 foi o grande ano do cinema brasileiro no exterior em muito tempo em termos de reconhecimento. Bacurau, A Vida Invisível e Democracia em Vertigem ganharam prêmios, entraram em listas e fizeram barulho. Isso foi resultado de um alinhamento ideológico do cinema nacional com aquilo que é produzido e valorizado no norte global, um cinema jovem, descolado e com cara de independente. E junto com isso o olhar do mundo liberal para o laboratório da extrema-direita operado por Bolsonaro nessas bandas e os tons de resistência que fazer cinema nesse contexto ganha.

O fechamento das salas e das produções em 2020 interrompeu o tempo desse tipo de cinema, mudou a condição da produção no mundo, e pode ter possibilitado a reorganização dos filmes no Brasil. Os filmes abaixo começaram a ser filmados antes da pandemia, alguns muitos anos antes e isso aponta para o maior problema: se leva muitos anos para fazer um filme no Brasil.

A partir do começo da década passada, houve uma explosão no número de faculdades de cinema no país, com muitos cursos abertos em universidades públicas. Uma geração inteira pôde se formar cineasta tendo aula com grandes diretores e teóricos que viveram a retomada e, em menor grau, o cinema novo. Ao lado disso, a Globo Filmes tomou conta da produção nacional e o modelo dependente do incentivo privado para financiar as produções, criado no governo Collor, despencou. 

E a verdade é que as novas e velhas gerações vivem um mercado em que não há espaço para experimentar, para tentar fazer cinema barato, para executar ideias assim que elas surgem. Quando se leva cinco, seis ou dez anos para lançar um longa, não há evolução por aprendizado, os diretores não avançam suas ideias e não há espaço para mais gente trabalhar na área. 

Pensando no que pode ser o cinema brasileiro do futuro, quero analisar algumas produções destacadas que vi nos últimos anos e que de alguma maneira demonstram o panorama atual.


Retratos Fantasmas (2023), de Kleber Mendonça Filho

KMF, como ficou conhecido, é o diretor brasileiro com maior projeção internacional dos últimos 10 anos. Desde o primeiro longa O Som Ao Redor (2012), seu trabalho foi exibido em Cannes (várias vezes), Roterdã, Chicago, Sidney e muitos outros festivais importantes, além de ter sido reconhecido em prêmios internacionais como associação de críticos de San Diego e o Prêmio César.

Sem dúvida, seu sucesso atraiu muita atenção do mundo todo e do público brasileiro, fazendo seu filme mais premiado Bacurau alcançar bons e incomuns resultados na bilheteria brasileira. E com o peso de ser o diretor-estrela do momento no Brasil, veio em 2023 seu Retratos Fantasmas. Um filme pequeno, esquisito, com algum charme, mas covarde e um pouco conservador.

Ele escolhe alguns signos curiosos para vetorizar essas opiniões. O mais marcante é a morte dos cinemas de rua da sua cidade (e curioso porque “Retratos Fantasmas” passou um mês em cartaz antes de ser lançado na Netflix), como suas fachadas viravam comentários sociais e a transformação desses espaços em igrejas é, para o diretor, a mais insuportável provação. O outro espaço que ele apresenta é o apartamento da sua família na zona sul, assim o filme faz um trajeto zona sul-centro de Recife, o inverso do que faz a classe média alta na história narrada.

A escolha por um documentário-montagem de gosto duvidoso, que fez muito sucesso entre os convertidos e passou despercebido pelo resto do público, não altera em nada sua imagem. Sua voz nos conta a história de Recife na perspectiva da classe média intelectual, suas imagens falam com saudade de um tempo que se valorizava cultura e os pobres não ocupavam o centro da sua cidade.

No contexto do cinema brasileiro, o tema desse texto, vejo uma questão importante. Seu filme é tão pequeno que abriu espaço para que outras coisas sejam protagonistas no momento atual. Isso parece oxigenar um pouco a discussão, abrir espaço para outros realizadores estarem nos debates do momento. O que a gente não tem como medir é a qualidade desses debates.


Mato seco em chamas (2023), de Adirley Queirós e Joana Pimenta,

Contemporâneo de KMF e muito premiado por Branco sai, preto fica (2014), Adirley Queirós é um diretor que anda nas bordas do cinema mainstream ocupando um espaço muito importante para a crítica de cinema brasileira. Mato seco em chamas é o ponto alto do seu trabalho até agora e sua premiação no Festival do Rio me faz ter expectativa.

A Ceilândia vira cenário de faroeste urbano quando uma gangue de motoqueiras descobre e explora petróleo no bairro do Sol Nascente fazendo o refino e vendendo para outros motoqueiros da região. Adirley segue seu estilo etnoficcional em que costura a realidade de Mato Seco em Chamas na teia das relações sociais da Ceilândia. As protagonistas interpretadas também por mulheres ex-presidiárias da região constroem a sua relação com a câmera a partir da sua realidade e suas histórias de vida.

Depois de trazer a realidade para o cinema, Mato seco em chamas leva o cinema para a realidade. Fazendo a campanha do seu fictício “Partido do Povo Preso” ganhar vida na Ceilândia e filmando a reação das pessoas quando motociatas de ex-presidiárias tomam as ruas da região com barulhentos motores. Os diretores oferecem perspectiva estética do fascismo brasileiro, e elaboram um filme que a integra a realidade. A maneira como o crime ocupa a tela fica ao largo da sociedade "oficial", da eleição de 2018, os fogos ao fundo que comemoram a eleição que têm muito impacto, mas pouco importa às personagens que precisam resolver seus conflitos criminosos. 


A Primeira morte de Joana (2023), de Cristiane Oliveira

O segundo longa-metragem de diretora gaúcha a coloca em grande momento. Ainda abaixo do radar de parte do público fiel ao cinema, Cristiane Oliveira é a diretora das narrativas contemporâneas no interior do Rio Grande do Sul. Seu primeiro filme "Mulher do Pai" explorava a fronteira e a película de 2023 especula o litoral norte do Rio Grande do Sul na perspectiva das pessoas dessa terra, principalmente tomando o olhar de uma adolescente descobrindo sua sexualidade conflituosa com sua família de mulheres conservadoras.

Quando se fala em litoral a gente pensa em praia, areia, mar, mas quem mora nessa região costuma estar longe disso. Oliveira enquadra a vida na beira da estrada de imigrantes que não se movimentam. A morte da tia de Joana, que dá nome ao filme, a faz pensar na vida cruzando o limite moral imposto pela casa (outro tema recorrente no trabalho de Oliveira), pela estrada.

As aventuras do coming of age abrem a vida de Joana para os elementos religiosos que constituem o país, sincretismo, umbanda (muito forte no litoral gaúcho) e a vida luterana, todas praticadas por sua família. Chama atenção também a presença constante dos cataventos no campo eólico que marcam a região.


Raquel 1:1 (2022), de Mariana Bastos

Esse filme e o anterior se relacionam por muito mais que a temática da adolescente que se descobre em conflito com o próprio território. Os dois longas são marcantes principalmente pela rara vontade de utilizar decupagem clássica nas suas imagens. Se Joana (do filme anterior) é uma jovem do interior que se vê em conflito com seu território a partir da sexualidade, Raquel é uma adolescente que se muda para o interior e ao descobrir na juventude cristã local o único espaço de socialização possível para ela, começa um conflito ao propor um texto sagrado novo que tenha mais respeito pelas mulheres.

Se Raquel quer ser uma profeta, Bastos a quer santa. A diretora compõe seus quadros como pinturas sagradas e faz sua personagem luz no meio das trevas, centralizando sua imagem e convocando o amor das suas fiéis e o ódio dos hereges, os cristãos da sua cidade. Se isso tudo não fosse suficiente, a diretora cria um final com influência De Palmiana que me faz crer no poder da sua câmera e esperar suas próximas obras.


Marte um (2022), de Gabriel Martins (texto por Marco Oliveira)

Invado o texto do João para falar sobre Marte Um, filme que assisti em sessão lotada no Capitólio, onde pude cumprimentar o diretor ao final.

Apesar de ter gostado do filme - que subverte de maneira sútil o que se entende como a família tradicional brasileira -, acredito haver nele uma certa sensação que me ocorre volta e meia nestes últimos anos, a de estar vendo um cinema regado ao dronismo e ao academicismo entojado da A24.

Que Marte Um relembra filmes como Moonlight (2016) e George Washington (2001) - um menino negro que não se encaixa em seus arredores e/ou têm sonhos grandes demais - é claro, o que me deixa preocupado é essa ausência da dramaturgia, essa ideia de deixar os acontecimentos ocorrorem de maneira distanciada, em um tempo dilatado. Dá até pra dizer que o filme rejeita esse impulso que já foi tão caro ao cinema brasileiro, lembremos da canção de Grande Othello em Rio, Zona Norte (1957), ou mesmo do salto/berro de Othon Bastos em Deus e o Diabo na Terra do Sol (1964), e quando fazer gol não provoca mais felicidade, sei lá se ainda estamos falando de Brasil.

No caso, estamos, e Gabriel Martins tenta retratar justamente isso - acho que consegue, mas não o suficiente para que possa vir aqui e chamar Marte Um de um filme mais brasileiro que, nesse caso, norte-americano (pois trocar Pelé por Neil Degrasse Tyson é, daí sim, o fim da brasilidade).


Filme de domingo (2021), de Lincoln Péricles

Lincoln Péricles é diretor do Capão Redondo, mas seu cinema independente e autofinanciado é feito para circular pelo país. De um dos autores que mais se destaca nas bordas do cinema brasileiro surge algo especial que tenho a destacar pelo futuro. LK faz imagem com as próprias mãos e tem a perspectiva dos próprios pés. Seus filmes saem das imagens do seu bairro, da sua casa, da sua família, mas extrapolam qualquer limite sem muito esforço.

Em "Filme de domingo", como diz o título, acompanhamos um dia de domingo na vida de uma família, a criança que também é protagonista tem perspectiva sobre a feira e sobre a câmera eventualmente dirigida por ela. Sua mãe e seu tio, que vem fazer uma visita, falam sobre o que aconteceu antes e sobre sua religião. Com foto montagem, letreiros, sons que saem do visto para o ouvido e rimas que saem da trilha para as vidas que assistimos, Lincoln Péricles elabora um cinema astuto.


E agora?

Qual será o cinema brasileiro dos anos 2020? O setor vive uma crise mais profunda e mais antiga que os anos de pandemia e o governo fascista. O financiamento hoje é muito complexo, os editais aprovam roteiros e não filmes, isso faz nossa linguagem, nossas imagens que uma vez foram tão importantes e admiradas no mundo todo se enfraquecerem.

2010 foi a década de KMF, Muritiba, Mascaro, todos bons diretores, mas já aparentemente incapazes de ocupar a posição de liderança que os grandes diretores brasileiros precisam ocupar para nosso audiovisual crescer. "Retratos Fantasmas" é de certa maneira uma confissão disso.

Nos anos 2020, a coragem de Queirós e LK parece mais urgente, mais capaz de apontar as alternativas de enfrentamento inclusive para mudar a forma como nosso cinema é financiado, para que mais gente possa fazer cinema, para que mais formas de cinema possam ser feitas. E que esse cinema corajoso seja feito com as imagens de Oliveira e Bastos, com a carga estética que é o que a gente sempre fez de melhor. 

Agora que não há atenção do resto do mundo para o que estamos fazendo aqui, é a hora de olhar para dentro, re-estudar nosso cinema e reformular nosso mercado. O Brasil é um país com potencial imenso para o audiovisual, como já tinham sacado os diretores do Cinema Novo, mas isso foi esquecido ou até enterrado no neoliberalismo. Na nova década, resta enfrentar esse esquecimento e procurar nosso cinema na Ceilândia, no Capão Redondo, no interior do Rio Grande do Sul e nos outros cantos do país. E talvez juntando essas experiências seja possível repensar nossos caminhos para fazer cinema brasileiro.

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