70 kg de Urânio em 70mm
Por Silvio Machado José Júnior
A experiência de ver Oppenheimer na versão ideal do diretor
Lançado mundialmente no dia 20 de julho de 2023, não é novidade que o novo filme do diretor Christopher Nolan foi pensado, executado e preparado inteiramente visando as grandes telas do cinema, entretanto nem todos os cinemas do mundo seriam capazes de suportar aquilo dito como o formato ideal pelo diretor – na verdade, apenas 30 cinemas ao redor do mundo seriam capazes de rodar o filme em película. Segundo o site oficial do filme, quando apresentado em 70mm IMAX, a projeção conserva a qualidade do seu formato original, deixando as imagens mais brilhantes e com resolução dez vezes maior que os demais formatos. Unindo isso a qualidade sonora digital e a tela curvada preenchida de cima a abaixo, a experiência cinematográfica parece alcançar níveis indescritíveis de imersão – níveis esses que pude ver, ouvir e respirar durante minha estadia em Praga, na República Tcheca, ao visitar o IMAX no cinema Atrium Flora.
O filme narra a história do físico e teórico estadunidense J. Robert Oppenheimer em dois momentos distintos de sua vida: primeiramente, seu papel de liderança no Projeto Manhattan, responsável por criar a primeira bomba atômica do mundo e, alguns anos depois, a perseguição pelas mãos do Macarthismo e também da sua própria consciência aterrorizada pelo seu legado. Além de um interessante retrato biográfico, o filme explora o tormento mental de um homem que, dentro de sua própria cabeça, reconhece o alcance de seu feito científico, enquanto simultaneamente vê o horror que causará à humanidade. Entre o sentimento de culpa e sucesso, não somente Oppenheimer transita pela figura do herói e do destruidor de mundos, mas todas as pessoas que o rodeiam o admiram na mesma frequência que questionam internamente a natureza de sua criação que, até agora, trouxe a humanidade apenas terror e tragédia.
Marx nos ensinou que a história se repete sempre pelo menos duas vezes, a primeira como tragédia e a segunda como farsa. O primeiro acontecimento, a tragédia, está lapidado na história da civilização e jamais poderá ser cicatrizado: registros visuais em preto e branco, documentos e ordens oficiais que ceifaram milhares de vidas, construções, monumentos e histórias. Sua dor ecoou e ainda ecoará nas demais gerações e, para que isso não se repita, a tragédia deve ser tratada com frontalidade e responsabilidade histórica em seu discurso, diferente do discurso da farsa, e o cinema é a farsa mais bonita do mundo. Não acontecerá da mesma maneira nem nas mesmas condições, ou seja, ela jamais irá curvar-se frente às aspirações e pensamentos de qualquer indivíduo ou grupo, e não deve limitar sua abordagem visando agradar o espectador, o status quo e sequer a própria realidade. A história de um filme deve se curvar, única e exclusivamente, a si mesma, pois o cinema é definido por aquilo que ele é – não pelo que o indivíduo que o visualiza acredita ser.
Levanto este tópico, pois parece consenso entre algumas opiniões criticar o diretor por não exibir em seu filme tal acontecimento ou lado da história, o que acabaria “glorificando” a criação da bomba atômica. Discordo desta afirmação, primeiramente que o protagonismo do filme é centrado na figura do físico e não na guerra em si, segundo que, pessoalmente, esta faceta desumana é expressa não no episódio bélico, e sim nas entrelinhas: a arma que se volta contra seu criador através do governo, o pesadelo psicológico da culpa e, sobretudo, o medo existencial frente a incompreensão do universo.
Se fosse necessário resumir minha percepção do filme a apenas um sentimento, facilmente optaria pelo medo. O susto gerado pela explosividade sonora, pela vivacidade cromática da projeção e pela monumentalidade do formato de tela parece romper o limite de segurança do cinema, um medo não somente gerado por essa sensação de perigo individual, mas também um medo existencial. Na exata cena em que o teste da bomba atômica é realizado pela primeira vez, me lembro de congelar na cadeira, imobilizado pelos meus sentidos e consciência, aquele clarão branco da explosão e o silêncio sepulcral da sala provocaram em mim um sentimento quase lovecraftiano em relação ao universo e tudo aquilo que permanece incompreendido para a razão humana. O grande feito do Nolan neste filme é, através da razão matemática e de conceitos quânticos, criar sensorialmente um horror gráfico indiferente ao que definimos como lógico, real e material. E, por um breve instante, estar tão próximo deste limite tênue, que separa a consciência humana e o universo incompreendido, foi uma experiência completamente assustadora.
Pessoalmente, considero Christopher Nolan um diretor apático que dificilmente consegue construir uma relação que não soe enlatada, ora caindo em uma superficialidade cômica, ora tropeçando em um sentimentalismo entediante. Além disso, ele é incapaz de realçar qualquer drama existente com qualquer recurso fílmico além da metalinguagem, a própria interpretação dos atores é punida por uma incrível necessidade de explicar tudo que está sendo sentido e acontecendo a cada momento do filme.
Entretanto, dando continuidade a uma vertente estilística surgida em Tenet (2020), o diretor parece assumir esse tom superficial ao invés de tentar justificá-lo, focando-se muito mais em desenvolver alguns aspectos sensoriais do filme que, ainda que superficiais, criam efeitos bastante expressivos. Tudo parece funcionar em Oppenheimer porque tudo está perfeitamente encaixado, a tensão crescente em construir a bomba dá propósito para certos diálogos, a falta de habilidade para criar uma ligação sentimental aqui se mascara como indiferença – a mesma indiferença cósmica citada anteriormente. E a caracterização de Oppeinhemer funciona tão bem (além da atuação fenomenal de Cillian Murphy) por conta da ação de inverter a lógica do Nolan, que destaca muito mais as sutilezas e o subconsciente do personagem principal por meio de profundos close-up e pesadelos visuais do que a importância de fatos históricos, que aqui são reduzidos a mera contextualização temporal.
NOLAN E A BOMBA
Apesar de estar muito distante de ser meu diretor favorito, reconheço uma certa importância no papel de Christopher Nolan para a situação atual do cinema. Em um mundo cada vez mais tomado por algoritmos e necessidades mercadológicas, onde o cinema muitas vezes é escravo de grandes corporações, Nolan representa um indivíduo singular como um artista capaz de executar uma ideia como bem entender. Uma de suas características pessoais que também é expressa através de seus filmes é seu gosto pelo ato de fazer cinema, de confeccionar algo a partir de uma motivação muitas vezes romântica. O diretor adiciona uma visão artesanal na criação da bomba, uma manufatura gerada por diversos homens e mulheres envolvidos que discutem, calculam e constroem aquilo que, cientificamente falando, foi um feito definitivo na história da humanidade. A paixão patriótica de derrotar o inimigo maior que justificava o trabalho vai se deteriorando conforme o tempo passa ao ponto de, próximo ao final da guerra, duvidarem da real aplicação daquela arma: após passarem tanto tempo admirando o abismo, quando percebem que o abismo olha de volta, já é tarde demais.
A última parte do filme ganha força dramática após a cena da detonação da bomba e a crescente tensão da investigação do Macarthismo. A atmosfera jurídica sobrepõe a biografia, o maquiavelismo do jogo político narra a história não só do um indivíduo condenado pelo estado, mas também do um homem que se subjuga ao ponto de jamais se libertar de sua consciência. O embate do subconsciente do personagem principal cria cenas espiritualmente surrealistas: a iluminação excessivamente branca que preenche o plano, o som isolado que se repete de maneira sobrenatural, o olhar vazio de Oppenheimer que parece atingir um estado de onipresença dividindo sua consciência entre o passado, o presente e o futuro. Nunca apenas um desses momentos temporais, consumidos pela reação em cadeia que causou. Esse ritmo burocrático na resolução do filme é continuamente desfigurado ao ser contado e recontado em diferentes perspectivas, por diferentes pessoas e em diferentes épocas históricas, criando uma natureza cíclica na narrativa em que tudo acaba por retornar a si e a um único momento: a criação da bomba atômica. Além de uma relação de causa e efeito, o desfecho mais se assemelha a uma reação química que vai tornando seus componentes cada vez mais caóticos e imprevisíveis.
Oppenheimer é um retrato histórico e pessoal sobre a condição humana escondida por trás da física, não é um filme interessado em discutir cumplicidade, e sim revelar uma faceta obscura da humanidade: o desejo inerente de explorar o desconhecido, de testar seus limites e ultrapassar a barreira mesmo que isso traga consequências humanas, morais ou históricas. Essa mesma curiosidade inconsequente que habita no coração do homem ao longo da civilização, a mesma curiosidade que fez o homem descer da árvore e explorar um novo continente é algo que sustém o espírito humano. E talvez essa condição científica da curiosidade é o que mais assusta o físico americano ao longo de sua vida, a consciência de que faria tudo novamente porque essa inquietude é humana.
Ter a oportunidade de ver Oppenheimer em 70mm no IMAX foi uma das experiências mais marcantes que já tive em uma sala de cinema, tanto pelo conteúdo do filme quanto pela própria importância daquele espaço. Ver um filme na grande tela sempre será uma experiência mais completa, pois é ali que todo filme sonha estar. E Oppenheimer me ensinou que a força de um filme também pode ser tridimensional: é o mesmo motivo das violentas touradas serem aplaudidas de pé ou que gritamos ao ver um jogo de futebol em um estádio, a realidade é transformada quando vista dentro desses espaços e o cinema muito mais que o templo sagrado de celebração, é um espaço capaz de conservar e condicionar um sentimento que jamais poderá ser novamente experienciado: a magia do primeiro olhar. Nessa cabine escura, gelada, e silenciosa, tal como é o cosmos que envolve nosso planeta, uma explosão atinge todos e reverbera em todas as direções, mas não é uma supernova ou uma estrela em combustão, e sim a explosão atômica do novo filme de Christopher Nolan.