Da nossa memória fabulamos nóis mesmos
Texto de Luís Gongra
Em Mato Seco em Chamas, as memórias periféricas se aliam à fabulação para se tornar uma mitologia
A frase que dá título a este ensaio é retirada dos créditos finais de Branco Sai, Preto Fica (2014), de Adirley Queirós. Acredito que essa afirmação pode dizer muito sobre o cinema do cineasta ceilandense, pois apresenta, de maneira simples, duas grandes características de seus filmes: a autoafirmação periférica e a fabulação da ficção em cima da realidade.
Em primeiro lugar, é importante dizer que os filmes do cineasta possuem forte relação com a Ceilândia e as demais cidades-satélites do Distrito Federal. Desde Rap, O Canto da Ceilândia (2005), o primeiro curta-metragem dirigido por Adirley, é possível notar uma valorização que ele dá para sua cidade. Porém, não trata-se somente de situar o filme na periferia, mas sim tornar a narrativa completamente intrincada ao território e sua cultura. Sobretudo por meio do embate político que existe entre Brasília e a periferia do DF, afinal existe uma segregação histórica entre os moradores do centro e os habitantes das cidades-satélites, desde a fundação da capital.
Nos filmes do diretor, há uma valorização da cultura local (o rap, a black music, a música brega, o forró) e um protagonismo dos habitantes da Ceilândia, que costumam interpretar a si mesmos, aliada a uma ficcionalização dessa realidade. Ou, como diz a frase, uma fabulação das memórias. No entanto, acho importante pontuar que não se trata apenas de uma fabulação no sentido de criar uma ficção para histórias reais, mas também criar mitos para a realidade. Uma mitologia própria da periferia.
Talvez o auge disso se dê em Mato Seco em Chamas (2022), dirigido por Adirley Queirós e Joana Pimenta. Ambientado durante a eleição de 2018, que elegeu Jair Bolsonaro como presidente do Brasil, o longa-metragem acompanha um grupo de mulheres que encontram um poço de petróleo na Ceilândia e decidem produzir e comercializar uma gasolina própria da periferia.
No filme, temos três personagens principais: Chitara, uma mulher que organiza a produção de gasolina e comanda a extração de petróleo na região; Andrea, uma ex-presidiária que se candidata à deputada distrital pelo Partido do Povo Preso (um partido político falso criado pelo filme), para defender os direitos dos encarcerados; e Léa, uma mulher lésbica que acabou de sair da prisão e que começa a trabalhar com sua irmã Chitara.
FAROESTE À BRASILEIRA
O longa começa com Léa em sua casa, contando pra câmera, como quem vai começar a contar sobre uma história antiga, um conto oral, uma memória de seu passado. De certa forma, remete a O Homem Que Matou o Facínora (1962), filme de John Ford que acompanha Ransom Stoddard (James Stewart), um senador dos Estados Unidos que vai até uma pequena cidade para participar do funeral de um antigo amigo. O filme se inicia com Ransom, já mais velho, contando para outros personagens sobre uma história antiga, que é a razão pela qual ele retorna a cidade, como se fosse um conto oral.
Após a introdução de Léa, é como se fôssemos jogados ao passado para entender qual é a história que ela conta.
A partir daí, a narrativa dessas mulheres é estruturada em uma ideia de cotidiano. Elas enchem galões de gasolina, participam de um culto evangélico, dançam em um ônibus ao som do funk, entre outras cenas em que, além de conhecermos a rotina dessas mulheres, ouvimos elas contar suas memórias e angústias, em conversas casuais. É como se as personagens existissem nesse meio-termo entre a memória e a fabulação. Por um lado, as atrizes são elas mesmas, carregam suas vivências para o filme, mas por outro incorporam esses elementos ficcionais, que remetem a arquétipos do cinema.
Entre esses elementos, há uma forte relação com o faroeste americano. Além das motocicletas que lembram Mad Max (1979) e da cena inicial semelhante ao filme de Ford, o petróleo, as armas, a violência e o cerrado do centro-oeste compõem uma caracterização de western muito típica. O que faz muito sentido com o espaço onde o filme se ambienta, pois a história de fundação de Brasília se assemelha muito à Marcha Para o Oeste americana. A capital era uma terra prometida, que atraiu diversos migrantes de todo o país para recomeçarem suas vidas. Mas, assim como no oeste americano, essa terra era prometida somente para alguns selecionados, enquanto outros eram expulsos para as periferias.
A premissa do faroeste carrega uma dimensão muito universal, pois trata-se de um gênero intrinsecamente relacionado à viagem e ao objetivo de encontrar uma terra nova para viver, que remete até à Odisséia Grega. André Bazin fala disso em seu texto “O Western ou o Cinema Americano por Excelência”, no qual afirma:
Não há dúvida de que é essa grandeza ingênua que os homens mais simples [...] reconhecem no western, apesar das diferenças de língua, de paisagens, de costumes e de trajes. Pois os heróis épicos e trágicos são universais. [...] A marcha para o Oeste é nossa Odisséia (p. 267, BAZIN)
Em Mato Seco em Chamas, a história das heroínas Léa, Andrea e Chitara remete aos grandes heróis do western e da mitologia no geral, justamente por conta dessa universalidade e da relação do DF com a busca por uma terra prometida. E no contexto em que o longa se ambienta (a ascensão bolsonarista), essa fabulação funciona para criar um “universo paralelo”, no qual a periferia está colocada como centro. Um espaço contrário ao Brasil bolsonarista do período. Porém essa afirmação periférica é colocada em cheque durante a narrativa, criando uma polarização entre o centro e a periferia do DF. Para desenvolver essa ideia, podemos falar sobre como a montagem de Cristina Amaral desenvolve essa dinâmica.
UMA MONTAGEM POLÍTICA
Nós passamos longos minutos observando esses momentos rotineiros, tudo em um tempo alongado, no qual a fotografia de Joana Pimenta parece extrair uma essência de cada plano. No entanto, esses momentos focados na vida periférica são interrompidos bruscamente por Amaral com choques de realidade, que demonstram a força do poder central. Na cena do ônibus, saímos de uma festa de mulheres lésbicas, se beijando ao som de um funk, um momento de afirmação dessas pessoas, e vamos para um ônibus em que todas essas mulheres estão sentadas como presidiárias, sob as regras da polícia. Estão controladas e têm sua afirmação quebrada.
Em segundo momento, saímos de uma das campanhas políticas de Andrea, no dia anterior à eleição, e somos levados, pela primeira vez em todo o filme, ao Plano Piloto de Brasília. Em uma longa panorâmica de plano único, observamos uma celebração bolsonarista que parece infinita. O movimento de câmera nunca chega ao fim, enquanto ouvimos os eleitores cantarem hinos celebrativos acerca do ex-presidente, que acabara de ser eleito.
Por fim, na reta final do filme, isso acontece uma última vez, quando descobrimos que a atriz Léa voltou a ser presa durante as filmagens. Chitara conta para a câmera o acontecimento, numa quebra total da fabulação que os diretores vinham construindo. A própria estrutura diegética da obra é destruída, como se a realidade invadisse o campo fabular do filme, num movimento contrário ao que o longa vinha desenvolvendo desde o começo, criando um clima de lamento e melancolia.
Essas três cenas são essenciais para compreendermos Mato Seco em Chamas e o papel da montagem de Amaral na construção dos temas da obra. Além de demonstrar o embate político que existe entre as cidades-satélites e o centro do Distrito Federal, os momentos funcionam como uma quebra na autoafirmação periférica. Apesar de passarmos longos minutos conhecendo essas personagens, suas memórias e sua cultura, tudo isso é tirado de nós nesses cortes, de maneira aterrorizante. É como se o filme quisesse nos mostrar que o poder periférico está constantemente sendo desafiado pelas forças opositoras.
Contudo, o longa-metragem não finaliza nesta nota melancólica, mas sim utiliza de sua própria estrutura fabular para valorizar a periferia. Nos momentos finais, escutamos Léa em um áudio (aparentemente gravado da prisão), no qual ela afirma que a história das gasolineiras é contada toda noite no presídio. Chitara, Andrea e a própria Léa passam a ser reconhecidas como lendas da região. Então, na cena final, os motoqueiros da Ceilândia libertam Léa da prisão e realizam uma motociata com a atriz pelas ruas. Em um momento apoteótico, ao som do rap DF Faroeste (que sampleia a trilha clássica de Ennio Morricone), a protagonista marcha como uma líder política. No entanto, tudo não passa de uma mentira de Adirley e Joana, pois ela continua presa no mundo real. Mas no campo da fabulação ela se liberta e isso tem um poder cinematográfico enorme.
De certa forma, lembra o que John Ford faz no final de O Homem Que Matou o Facínora. Tom Doniphon (John Wayne) e Stoddard criam uma mentira juntos, na qual o assassinato do facínora do título, chamado de Liberty Valance, teria sido cometido pelo próprio Stoddard. Sendo que, na realidade, Doniphon o matou. No entanto, o fato do senador ser reconhecido por isso faz com que ele ganhe prestígio e a pequena região do oeste seja finalmente reconhecida pelos Estados Unidos como um estado oficial. A mentira de quem matou o facínora funciona enquanto um mito de fundação, que ajuda a população local.
Em Mato Seco em Chamas, Adirley e Joana usam a ficção, por meio do western, para realizar essa mesma fundação, só que na Ceilândia. Eles criam uma mentira que será contada, de geração em geração pela população local, como um mito que, diegeticamente, funda uma nova periferia, que passa a ser independente e autossustentável. A fabulação transforma Léa, Chitara e Andrea nas rainhas gasolineiras.
Luís realiza uma pesquisa em iniciação científica, pela qual é bolsista PIBIC-CNPq na UFSCar, sobre o filme Mato Seco em Chamas (2022). A pesquisa é realizada em parceria com seu orientador, o Prof. Dr. Samuel José Holanda de Paiva. Este texto, apesar de não ter relação institucional ou acadêmica com a iniciação científica, se baseia em parte na pesquisa realizada por Luís com seu orientador.