Crítica | Fechar os Olhos (Fotogramas)

NOVA OBRA PRIMA DE VICTOR ERICE PARA O CINEMA ESPANHOL

Diretor de O Espírito da Colmeia e O Sul, estreia Fechar Os Olhos, o filme que esperávamos a décadas


Notas do tradutor (Marco Leal):

Crítica escrita por Manu Yáñez, e publicada em 29 de Setembro de 2023 no site da revista espanhola Fotogramas (e que pode ser conferida aqui).

Chama atenção a relação filme-diretor-carreira-teoria que Manu estabelece, como se o filme respondesse questões sobre a filmografia (e a ausência desta) de Erice ao passo que também o beatifica como um dos poucos mestres ainda vivos.

Talvez seja ir longe julgar que Erice possa se tornar um cineasta de base como Ford e Ozu, mas Fechar Os Olhos é um filme ambicioso e fruto de uma mente singular o suficiente para ser lembrada como tal.


Segundo André Bazin — o grande teórico do realismo cinematográfico —, no coração da representação fílmica repousa o complexo da múmia. Para o autor de O que é o cinema?, se “a morte não é mais do que a vitória do tempo”, então “fixar artificialmente as aparências carnais de um ser implica tirá-lo do fluxo do tempo e encostá-lo na margem da vida”. Em Fechar os Olhos, o novo e magistral filme de Víctor Erice, essa tensão entre vida e morte, entre aparição e eclipse, ganha forma através do personagem de um cineasta (magnífico Manolo Solo) que está há décadas sem filmar e que aspira a recuperar uma amizade perdida nas dobras do tempo e da memória. Em um momento crucial do filme, quando esse resgate do passado parece já condenado ao fracasso, o cineasta tem a ideia de confrontar uma série de personagens com suas próprias imagens passadas. A ideia do velho diretor evoca as teses de Bazin, na medida em que, em Fechar os Olhos, o cinema se torna “algo como a mumificação da mudança”. Para Erice, o cinema tem a capacidade de fixar o tempo, de conservar a memória, mas esse embalsamamento da realidade colide bruscamente com o curso da vida, que avança de forma inexorável. Vale lembrar que, segundo Jean Cocteau, o cinema nos permite observar “a morte trabalhando”.

Essa dupla articulação do tempo — mumificado na tela, incessante na realidade — funciona como o motor de Fechar os Olhos, um filme único no cinema contemporâneo, uma obra que toma o melhor da herança do cinema — a essencialidade dos pioneiros, o virtuosismo dos clássicos, a ousadia dos cineastas da modernidade — e a coloca em diálogo com a História da Espanha e, ainda mais, com o legado fílmico do próprio Erice. Parecia impossível que um filme pudesse nos fazer esquecer a orfandade que sentimos como cinéfilos durante as três décadas em que Erice se afastou da direção de longas-metragens, mas Fechar os Olhos, com seu avassalador fluxo de ideias, imagens e emoções, realiza o milagre. De fato, apesar de sua predileção pelo mortuório e sua tendência à nostalgia — um personagem afirma que os milagres no cinema deixaram de existir após a morte de Carl Th. Dreyer —, Fechar os Olhos certifica a vivacidade do cinema, que se recusa a perder sua condição privilegiada de arte do presente.

O novo filme de Erice começa em um ilusório 1947 — ano em que se passa um filme dentro do filme, intitulado O Olhar do Adeus —, mas se afinca em um presente de melancolia, onde Miguel Garay (o diretor interpretado por Solo) é forçado a rememorar o desaparecimento do ator Julio Arenas (extraordinário José Coronado) durante as filmagens de O Olhar.... A decisão de Erice de situar um filme inacabado no centro da história (de forma semelhante, por exemplo, a Irma Vep de Olivier Assayas) impregna cada passagem de Fechar os Olhos com modernidade, uma obra que se coloca na fértil fronteira entre o narrativo e o conceitual. No roteiro de altíssima precisão escrito a quatro mãos por Erice e Michel Gaztambide, cada diálogo e cada reviravolta da trama encontra sua correspondência nos âmbitos da historiografia fílmica, da memória histórica e da trajetória do próprio Erice.

Quando o personagem de Miguel Garay (Solo) deixa Madrid para se retirar para sua humilde morada andaluza, onde vive com um grupo de almas livres, Fechar os Olhos aponta uma belíssima dupla alusão ao cinema clássico americano e à obra de Erice. Em uma reunião noturna com sua família adotiva, Garay pega o violão e interpreta a canção My Rifle, My Pony and Me, imortalizada em um dos trechos mais alegres do faroeste Río Bravo de Howard Hawks. Mas, mais do que qualquer outra coisa, essa transição para o extremo sul da península concretiza o sonho que ficou pendente em O Sul, o segundo filme de Erice. A terra prometida, finalmente alcançada. Mas os felizes acertos de contas não param por aí. Que O Olhar do Adeus — o filme dentro de Fechar os Olhos — evoque tanto as feridas da Guerra Civil Espanhola quanto o universo oriental pode ser visto como uma referência à adaptação de O Encanto de Xangai de Juan Marsé que Erice escreveu, mas nunca chegou a filmar.

Fechar os Olhos vai se construindo, de forma densa e ao mesmo tempo fluida, a partir do encadeamento pausado da odisseia itinerante de Garay com objetos altamente simbólicos (uma fotografia perdida, uns sapatos abandonados, uma peça de xadrez) e referências memoráveis (a F.W. Murnau, Nicholas Ray, Carlos Gardel). Duas dessas citações intertextuais fundamentam as bases do imaginário fílmico de Erice. Em uma lata velha cheia de lembranças do passado (sempre a memória!), Garay encontra um pequeno caderno que, com o passar acelerado de suas páginas, permite ver L'arrivée d'un train à La Ciotat, um dos primeiros curtas dos irmãos Lumière, os pais do cinema. Depois, em outra cena, o protagonista se depara com uma cópia de Caligrafia dos Sonhos, romance em que Marsé recorreu à sua memória pessoal para descrever uma geração que alimentou sua imaginação nos cinemas de bairro. Assim, dos Lumière a Marsé, Erice constrói uma emocionante alegoria sobre o possível encontro entre o documental e o ficcional, ou o que o crítico Santos Zunzunegui definiu, em seu estudo de O Sol do Membrilho, como o diálogo entre “a via Lumière” e “a via Méliès”.

Não é casual que a imagem mais icônica de Fechar os Olhos seja a de uma estátua de tons clássicos e forma humana cuja cabeça aparece desdobrada nos rostos de um homem e uma mulher. Ali está, novamente, o núcleo dialético de um filme que reflete sobre a relação entre os dois lados do cinema: aquele que trabalha com o tempo real — Fechar os Olhos é um filme sobre “saber envelhecer” — e aquele que evoca, por meio da fabulação, o poder de comoção da arte. E para comoção a que provocam as fusões encadeadas com os quais Erice vai fragmentando seu filme no que parecem ser capítulos de um relato literário. Espera-se que chegue o dia em que as fusões encadeadas de Erice ingressem no panteão dos grandes emblemas da forma cinematográfica, junto aos pillow shots de Ozu, às portas fechadas de Lubitsch, aos planos detalhe de Robert Bresson ou aos céus alaranjados de John Ford.

Memória, comoção… e reconhecimento. Em Fechar os Olhos, Erice nos mostra que a verdadeira prática cinematográfica não é o resultado de uma empreitada criativa, mas a matéria essencial da própria vida. Esse compromisso artístico se torna evidente em uma cena sublime em que a atriz Ana Torrent — que interpretou a menina em O Espírito da Colmeia e aqui faz o papel da filha do ator desaparecido — enfrenta de frente seu trauma do passado. Entre fascinada e aterrorizada, como naquele mítico encontro com Frankenstein, Torrent se estremece (e nos estremece) enquanto pronuncia as palavras: “Sou Ana”. Este crítico, que viveu esse trecho e o final do filme à beira das lágrimas, sucumbiu à tentação de imaginar Erice no papel de Torrent, tomando a palavra para proclamar: “Sou Víctor”. E ainda mais, lembrando a célebre máxima de John Ford, imaginei que o mestre afirmava: “Meu nome é Víctor Erice… e eu faço filmes”. Obrigado, mestre.

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