Entrevista | Hyusuke Hamaguchi (Cineaste)

CINEMA IMPURO: UMA ENTREVISTA COM HYUSUKE HAMAGUCHI

Esses dias falei uma dessas frases que não significam nada: o Hamaguchi é o melhor diretor da geração dele. O que queria dizer é que um diretor que, em quatro anos, lançou “Roda da Fortuna”, “Drive my Car” e “O Mal não Existe” (e ainda assinou o roteiro de “Esposa de um espião”) simboliza o melhor do melhor no cinema do Século 21. A entrevista reproduzida abaixo dá dois argumentos potentes para minha afirmação inicial: Hamaguchi é o mais novo defensor da gigante escola japonesa e não só aceita esse papel como o reivindica. Hamaguchi se coloca no mundo do cinema como um defensor da cinefilia.

A herança do cinema e da arte japonesa na obra de Hamaguchi é percebida facilmente: ele escreveu um filme para K. Kurosawa, adaptou um livro de Murakami e cita Ozu como grande referência. Mas, também, defende uma ideia do que é a tradição japonesa e aplica ela em seus filmes. No seu lançamento mais recente, “O Mal não existe”, a maneira como usa o quadro é arrebatadora, compondo carinhosamente cada uma das imagens, usando os eixos da imagem de todas maneiras e explorando ao máximo a profundidade do campo da câmera.

E é assim que se revela o diretor-cinéfilo, o diretor-cinéfilo que reivindica a escola mais consagrada pela cinefilia. Utilizando o cinema de Ozu e Mizoguchi e sua precisão poética para se impor em um momento de pouquíssima classe que vive o cinema contemporâneo. Essa entrevista abaixo, no fim das contas, nos conta isso: não só um grande diretor de uma geração, mas um defensor das ideias de arte do seu país.


Notas do tradutor (Marco Leal):

Conduzida e traduzida para o inglês por Eugene Kwon, para a revista Cineaste, Mark Peranson, e publicada na íntegra em 2023 apenas para assinadores da revista, a porção disponível da entrevista foi traduzida diretamente do site da Cineaste (que pode ser conferida aqui). Foram mantidas apenas as perguntas e respostas entre o entrevistador e o entrevistado, com a introdução original sendo excluída desta tradução. Assim como em outras entrevistas, trechos podem ser cortados da tradução a depender do tradutor.


Cineaste: Você poderia me dizer seus primeiros esforços com cinema? O que você estava tentando atingir?

Ryûsuke Hamaguchi: Durante os meus 20, eu queria criar um certo bloco de tempo e espaço. Com os filmes do Cassavetes, eu me fascinava por como os cortes fragmentados se juntam para formar um senso contínuo de tempo e espaço, algo que eu falo sobre na minha tese. Eu estava interessado em como as emoções são retratadas nos seus filmes. Personagens que, do nada, se comportam e falam de maneiras que contradizem suas palavras e ações passadas. Se você mostrá-los de uma maneira convencional, eles se tornam personagens contraditórios. Mas com um forte senso contínuo de tempo e espaço, esses personagens contraditórios se tornam muito interessantes para os espectadores. Outro ponto importante para mim foi como organizar os pontos de vista dos personagens em meus filmes. Eu estava realmente preocupado com isso nos meus 20.

(CA): Você passou um ano no centro Reischauer de Harvard como um diretor visitante. Você teve alguma interação com outros diretores lá?

(RH): Eu vivi no Irã dos três aos cinco anos de idade por causa do trabalho dos meus pais. Depois, morei no Japão. Eu me mudei muito quando era uma criança. Foi a minha primeira vez indo para a América durante os meus anos de Harvard. Eu sabia que Lucien Castaing-Taylor estava em Harvard. Eu vi o seu Leviathan (2012) e me interessei bastante, mas infelizmente nunca pude encontrá-lo pessoalmente. Eu tive uma interação frequente com um diretor Argentino, Matías Piñeiro, que estava ensinando no MassArt, de Boston. Ambos de nós assistiram os trabalhos uns dos outros e eu achei os filmes dele ótimos. Lav Diaz também estava lá, ensinando no programa Radcliffe de Harvard, mas nossa interação foi mínima.

(CA): Você percebe mudanças significantes entre as culturas de filme do Japão e dos Estados Unidos?

(RH): Eu percebo. Eu tenho uma sensação de que o Japão é um pouco especial. Minha impressão é que muito da cultura cinéfila do Japão está sob grande influência de Hasumi Shigehiko, particularmente seu trabalho com a crítica durante os anos 80. Cinéfilos no Japão não são apenas fãs que assistem tantos filmes quanto podem, mas sim pessoas que se esforçam para compreender o visual e o som de cada trabalho de maneira tão precisa quanto possível. É questão de cada indivíduo que tipo de teoria se desenvolve dessa atividade, mas há uma ênfase geral em ver detalhes dentro do quadro e também prestando atenção para o som exterior ao quadro. Alguém que não lembra precisamente dos detalhes não é considerado confiável na cultura cinéfila do Japão.

Essa tendência impõe o ato de "assistir filmes de mais" no espectador. E melhorar essa capacidade de "assistir" é diretamente conectado com a prática da direção, que realmente se tornou um elemento central na cultura cinéfila Japonesa. Essa tendência natural acaba nutrindo diretores, como Kiyoshi Kurosawa e Shinji Aoyama. Honestamente, eu não sinto que exista uma cultura cinéfila fora do Japão que lute tanto com a questão de ver detalhes nos quadros, discutindo o que foi "visto" e o que foi "ouvido" em um filme. Pelo menos, a impressão que eu tenho de falar com jornalistas ao redor do mundo é que tem uma ênfase maior em assistir muitos filmes e interpretar aspectos gerais da narrativa e os códigos culturais que os compõem.

[...]

(CA): Eu gostaria de te perguntar sobre cinema coreano. Tendo filmado The Depths com atores e equipe coreanos, como você vê a diferença entre as culturas de produção dos dois países?

(RH): Eu não sou tão familiar com isso, mas naquela época senti que a escala de produção era bem diferente. Senti que a equipe coreana estava desapontada com a escala no Japão. A Universidade de Artes de Tóquio, tinha suas raízes na cultura de mini-teatro com Horikoshi Kenzo, que estabeleceu a Euro Space [um cinema art-house de Tóquio], como uma figura central. A universidade visava combinar o mini teatro e o estilo art-house com a indústria comercial de cinema no Japão sem perder sua essência. Por outro lado, a Academia de Filmes Coreanos claramente se modela igual Hollywood. Está tentando fazer uma versão coreana do estilo de produção americano. As perspectivas dos dois países são completamente diferentes, e eu não tenho certeza de qual abordagem é melhor.

(CA): Gostaria de ouvir mais sobre como você vê a relação entre teoria e prática. Seu interesse e familiaridade com a crítica e teoria ajudou você como diretor?

Hamaguchi: Sendo bem honesto, não acho que exista uma verdadeira relação entre teoria/crítica e o ato de dirigir, pelo menos em relação ao meu próprio processo. A teoria é geralmente generalizada, e é realmente difícil aplicar uma teoria tão generalizada nos sets dos filmes, que são bem diferentes. É um pouco padronizado demais para que possa ser realmente utilizado nos sets. É o mesmo com a crítica, eu acho. Mesmo se você tivesse lido, você não usaria conscientemente ao produzir um filme. Crítica boa de verdade captura algo que está em um nível subconsciente para diretores. Você pode chamar isso de um certo código cultural, ou talvez de um tipo de padrão que se repete em um nível inconsciente. Quanto melhor for a crítica, mais ela captura um aspecto da realidade que faz o filme existir, mas não é universalmente aplicável.

Por outro lado, "palavras" por si próprias, são importantes para o processo criativo sendo que fazer filmes é um processo coletivo. É absolutamente necessário comunicar e expressar por linguagem concreta. Claro, um diretor pode estar sob a influência da crítica quando fazendo um filme, mas é mais sobre ações concretas, como colocar a câmera aqui e ajustar a altura da câmera. Ao assistir filmes, desenvolvemos critérios do que consideramos desejável para nós mesmos. Ter esses critérios nos nossos corpos, no entanto, não impacta o processo de direção. É por isso que temos que rearticulá-los pela linguagem.

Pegue, por exemplo, a linha imaginária de 180 graus que é frequentemente mencionada. Na teoria, sabemos o que é. Mesmo na prática, é algo a que se deve estar atento. Mas, às vezes, existem situações que pode ser aceitável ou até desejável cruzar essa linha. E para tal situação, temos que ter uma linguagem tateadora no set de filmagem. Como diretores, não podemos trabalhar baseados apenas em conhecimento implícito como se baseavam antigamente. Agora, no Japão, equipes de filmagem se juntam por um período curto e se dispersam logo depois. Não podemos comunicar e trabalhar com a equipe e o elenco sem dizer uma palavra, assumindo que isso será entendido. Cada vez que entramos em produção, é como começar do zero, então devemos compartilhar pela linguagem. É algo que eu tento manter em mente. Eu penso sobre como melhor comunicar a direção que quero pegar. Claro, tem vezes quando minha comunicação é recusada. Mas de qualquer forma, eu sempre penso no que quero transmitir, qualquer que seja o resultado.

(CA): Hasumi Shigehiko aparece em muitos de seus escritos, incluindo sua tese de graduação e sua contribuição para um volume que comemora a bolsa e o criticismo dele. O que você tira das ideias dele?

(RH): O que realmente me influenciou durante meus 20 foi o livro de Hasumi de 1983, Diretor Yasujiro Ozu. Com os escritos de Hasumi, é difícil de determinar a linha, mesmo para japoneses, em quais partes deveríamos realmente abraçar porque foi escrito estrategicamente contra as interpretações de Ozu daquele tempo. Eu acho que é um desafio para tudo ser entendido no exterior. Mas a essência do argumento dele é realmente simples. Hasumi pergunta para nós: "Você está observando de perto e ouvindo com cuidado antes de escrever sobre cinema?" De outro modo, o filme seria utilizado para reforçar narrativas e teorias próprias. Há uma forte afinidade entre a ideia central de Hasumi e os diretores no set. No set, se algo não é capturado visualmente, a palavra ficcional sendo criada pode não ser estabelecida. Ou se um certo som não é ouvido, uma emoção específica pode não ser atingida. Isso demanda uma sensibilidade máxima para o que se vê e o que se ouve. Não somos parte da geração que pegou as palestras de Hasumi diretamente - o que certamente teve tanto impacto quanto seus escritos - mas é bem famoso que seus alunos eram perguntados o que eles viam durante uma projeção, com Hasumi constantemente apontado o quanto que eles perdiam quando assistindo a um filme. Pessoas que realmente veem o que está na frente delas são poucas e distantes umas das outras. Eu acho que a realização de que alguém pode perder tanto ao assistir a um filme é um processo essencial.

(CA): Junto com Cassavetes, Robert Bresson é um diretor essencial para você. Você poderia me dizer sobre a importância dele para você como diretor?

(RH): Eu não acho que entenda completamente o reino que Robert Bresson atingiu ao longo de sua vida. Como o próprio Bresson admitiu, houveram mudanças significativas ao longo de sua carreira. Para cinéfilos, cada um dos seus filmes é marcante do início ao fim. O trabalho de Bresson, seja sua exploração consciente de música, som ou seus esforços colaborativos com os atores que chamava de "modelos", é consistentemente excepcional e supera padrões a cada fase de sua carreira. Não é apenas seu uso de modelos, mas também a evolução que ele passa ao longo de sua carreira que eu acho inspirador.

Mesmo que ele seja certamente uma influência, eu não tenho nenhuma intenção de imitar seus métodos únicos. Para mim, não é muito sobre o visual mas sobre vozes. Bresson ouviu uma quantidade imensa de informações em vozes. Elas podem parecer rasas, especialmente a entrega de modelos, ao ponto que algumas pessoas dizem que Bresson tratava seus modelos como bonecos. Dentro desses modelos Bressonianos, no entanto, existem variações vividas em voz. Conforme o tempo passa, me torno cada vez mais convencido que Bresson estava atento para essas nuances. Eu quero ter esse tipo de ouvido eu mesmo.

(CA): Você tem uma profunda apreciação por diretores coreanos como Hong Sang-soo e Bong Joon-ho. Não é difícil ver porque você admira Hong. O que particularmente me intriga é seu apreço pelo estilo meticulosamente calculado de Bong. Quais aspectos do trabalho dele você aprecia?

(RH): O fato que os filmes de Bong são meticulosamente construídos tem um valor inerente. Não é fácil fazer filmes com tamanha precisão, como Parasita. E é o mesmo com Memórias de Um Assassino (2003). É memorável para mim como um país que é tão geográfica e economicamente próximo ao Japão pode vir com filmes tão diferentes.

Na minha visão, é inegável que Bong atingiu uma escala que filmes japoneses modernos ainda tem que atingir. Ele tem um controle tremendo sobre seu estilo. Mesmo que eu não faça filmes de grande orçamento, percebi o tamanho do espaço que existe entre os cinemas japoneses e coreanos quando vi Parasita. Os filmes dele não deixam espaço para erro. Parasita mostra relacionamentos verticais muito bem. Pode parecer esquemático em excesso para espectadores coreanos, mas eu considero rude criticar seus filmes em termos de realismo. Acho que é provavelmente bom que esquematização e formalização sejam reconhecidas mais no contexto do cinema.

Filmes japoneses podem ser limitados por orçamento, mas tem mais que isso. Existe um senso de pobreza do quadro no cinema japonês contemporâneo. Não é apenas sobre ter um orçamento baixo, mas uma falta de conhecimento, ou não ser capaz de resolver dificuldades no set. Tem sempre algo que não está bem no quadro. Esse raramente é o caso dos filmes do Bong, no entanto, o que é realmente impressionante.

(CA): Considero sua frase, "pobreza do quadro", bem chamativa. O que você quer dizer com isso exatamente?

(RH): O que quero dizer é que o ser ficcional e os audiovisuais não estão alinhados. Eles estão alinhados de um jeito que prejudica a ficção. Isso torna difícil de acreditar na ficção em um caso como esse.

Cineaste: Qual a causa por trás dessa "pobreza do quadro" na sua visão?

Hamaguchi: De alguma forma, é inevitável. Não é apenas por conta da indústria japonesa, mas uma tendência social. Enquanto eu particularmente não me sinta assim, é um mundo onde aqueles que precisam fazer dinheiro com filmes priorizam o consumo a curto prazo e de um nível superficial como qualquer outro negócio. Em uma situação como essa, filmes japoneses que não incluem algo que alguém possa sentir imediatamente em um nível sensorial declinam gradualmente. Por outro lado, a animação japonesa, que pode funcionar nos sentidos da audiência mais diretamente comparado ao cinema, ganha mais espectadores.

Costumava ser o caso que filmes japoneses não simplesmente serviam como metáforas. Eles tinham uma riqueza sutil carregada pelo visual e pelo som. Mesmo se não fosse explicitamente dito, um poderia perceber o que estava lá, e se tornou uma experiência enriquecedora. Mas o ambiente para perceber e apreciar tais filmes se tornou raro não apenas no Japão mas também ao redor do mundo. Para se adaptar a essa nova situação, a indústria japonesa passou por transformações significativas. Mas infelizmente, atingiu um ponto onde é bem difícil reverter essa tendência.

(CA): Você acha que essa tendência global é causada pela cultura digital?

(RH): Absolutamente, acho sim. Mesmo minha própria habilidade de concentrar caiu significantemente. É extremamente raro para mim assistir um filme em casa sem tocar meu smartphone pelo menos uma vez. Se esse é o caso para um diretor, é apenas natural que os espectadores não consigam sentar e assistir a um filme. Hoje em dia, você pode assistir vários filmes pelos serviços de streaming. Pessoas podem dizer "eu assisti aquilo" independente de terem assistido nos cinemas ou via streaming. A substância do ato de "assistir" é, deste modo, gradualmente sendo diluída. Isso, por outro lado, nos faz perceber como os cinemas são úteis como um lugar para assistirmos e ouvirmos as coisas.

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