ARTIGO | A Oposição à Autoconsciência Moderna de Clint Eastwood
Texto de Gabriel Cunha Pinheiro
Há um determinado momento em Fort Apache, próximo ao final do filme de John Ford, em que, após uma sanguinária batalha travada entre a cavalaria e os indígenas, tudo o que resta em cena é a filmagem do Monument Valley em sua forma mais hostil. É quase possível sentir a poeira extravasar a película do filme. A câmera trêmula, o trauma dos personagens envolvidos no conflito. Esse momento, que não é meramente pontual na carreira de Ford, destaca um elemento que praticamente inexiste no sistema das produções fílmicas contemporâneas, que é a capacidade de um filme romper com o previsível, dando lugar a um “cinema de estúdio” que abre margem para a possibilidade do descuido, uma certa instabilidade da mise en scène. Nesse caso, leia-se “descuido” como uma abordagem orgânica e não esterilizada do processo fílmico, que é basicamente o avesso da perfeição técnica idealizada pelo neoliberalismo desde a década de oitenta. Em um documentário dirigido por Peter Bogdanovich, o realizador pergunta a John Ford sobre a forma como ele filma o Monument Valley e Ford, sem hesitar, responde de forma mais do que objetiva: com uma câmera. E é essa noção prática, pouco sinuosa, que reserva até mesmo uma certa inocência com relação ao processo fílmico, que foi perdida.
Desde então, o contexto Hollywoodiano a que John Ford estava habituado alterou-se completamente. Os movimentos de apropriação da ideologia liberal sobre o cinema limitaram à enésima potência tudo o que se encontrava fora da expectativa de um mundo plasticamente perfeito e controlado. Essa progressiva transformação do mercado fez com que a marca dos supostos “autores” não significasse nada senão a rotularização de um produto de grife, que entrega exatamente aquilo que se espera de determinada empresa, sem quaisquer espaços para a imprevisibilidade na obra final. ”Directed by Martin scorsese” não é nada mais do que Louis Vuitton transvestido de cinema autoral e independente. Desde o final dos anos 70, esse processo tem ocorrido com altíssimo vigor. Com o forte impacto do fim da United Artists, marcado simbolicamente por um dos últimos filmes “corajosos” do cinema de estúdio, Heaven's Gate, praticamente extinguiram-se os longa-metragens não subordinados a esse controle industrial de sua produção. Não há mais espaço para a pluralidade de produções e, mesmo em um dado “mercado independente”, os responsáveis pela subordinação do processo criativo a um sistema que esteriliza e mecaniza o cinema continuam vivos. Basta analisar o recente contexto de lançamento e recepção de Anora para se questionar: cinema independente de quê? Ou de quem? Como se o apoio irrestrito a um filme como esse, vindo de uma academia que endossa e financia a estagnação artística não fosse, no mínimo, algo de que se suspeitar.
Assim, quando se pensa em quem pode ser considerado um continuador contemporâneo do que era feito nos tempos das produções de John Ford, um dos poucos exemplos é Clint Eastwood. Penso nisso não em um sentido de apontar a inexistência de um verdadeiro cinema independente americano, que se localiza em outro campo de debate, com Hal Hartley, James Gray e Abel Ferrara, por exemplo. O que viso a discutir aqui como semelhança ao clássico e resistência no trabalho de Eastwood é muito mais a inserção de um cinema com uma sensibilidade específica justamente dentro de um contexto de estúdios tradicionais, como se percebe nas produções de Clint. Ou seja, mais do que vislumbrar a existência de um cinema periférico à indústria, meu foco é apontar como Clint Eastwood estrutura sua obra em uma margem localizada dentro da própria indústria. Embora essa dada continuação de um certo classicismo também seja atingida em algum nível pela temática e carga moral de seus filmes, o que realmente importa é apontar como sua forma, em sua impossibilidade de atingir uma reinvenção pura do cinema clássico, transforma-se no principal fator que eleva seu potencial como autor nesse contexto.
A partir de uma breve retrospectiva, é possível notar como, desde seus primeiros trabalhos como diretor, Clint já se colocava como contrário às tendências academicistas e estagnantes da produção hollywoodiana. Basta ter como comparação alguns de seus contemporâneos para se observar as diferenças. Quando Robert Altman se inicia em um processo político de autoconsciência cômica e de espetacularização do estilo com Nashville e Francis Ford Coppola inaugura o “filme de arte” de estúdio com The Godfather, Eastwood realiza seus primeiros trabalhos já aplicando, como síntese e como disrupção, os ensinamentos de Leone, Siegel e de Cimino, grandes parceiros na carreira de ator de Clint. High Plains Drifter, seu primeiro western como diretor, já demonstra com precisão qual é de fato seu interesse como parte criativa da indústria e aponta para onde dirigir-se-ão algumas tendências de sua carreira.
High plains drifter é um filme peculiar já na base de sua narrativa. O personagem principal, interpretado pelo próprio diretor, apresenta-se como alguém muito mais nefasto do que um simples anti-herói. É uma figura que não possui nenhuma restrição moral, que chega a uma nova cidade violentando os moradores, assediando as mulheres e roubando o comércio local. Estabelece-se então um conflito na narrativa, em um cenário que faz a presença do cavaleiro sombrio parecer útil à cidade. No entanto, os métodos utilizados para a resolução do problema destacam-se por suas controvérsias, já que o cavaleiro sem nome usa os moradores da cidade praticamente como fantoches contra a bandidagem que os assola, levando o local para um estado de anomia social em nome de um suposto “bem comum”. Esses apontamentos da narrativa do filme não partem necessariamente de um elogio qualitativo, já que essa sensibilidade do diretor será desenvolvida de uma forma melhor em seus trabalhos futuros, mas mostra como Clint pouco se importa com questões de moralismo, verossimilhança ou qualquer outra coisa que poderia ser exigida dele pelo sistema desde o início de sua carreira. É um grande trabalho de imposição de sua personalidade ríspida em um contexto em que se esperaria qualquer outra coisa vindo de um diretor iniciante. E tudo isso retratado a partir de uma abordagem formal muito crua, que recusa os recursos e adereços dos estúdios de que Clint se dispunha. O filme segue uma execução quase artesanal de direção, que recusa qualquer glamourização do processo cinematográfico e abraça uma crueza que dá tons de um filme de terror para o western. Mantendo uma relação íntima e direta entre a câmera e o que se filma, estabelece um senso de objetividade na mise en scène que será algo muito típico da carreira do diretor.
Assim como percebido nesse suposto caos organizado que é High plains Drifter, tanto em sua forma quanto narrativa, é possível notar como seu cinema é dotado de vários desses momentos nos quais se nota uma suposta falta de cuidado, em que a encenação e a progressão narrativa parecem ocorrer de uma forma quase direta demais, em um sentido não de aproximação do realismo Baziniano, mas como uma forma de alternativa a um certo comodismo do naturalismo hollywoodiano. Basta notar certas “incongruências” em algumas escolhas de sua carreira que denotam essa despreocupação tão forte.
Um grande exemplo dessa tendência da carreira de Clint Eastwood é Honkytonk Man, um filme menor do diretor - e talvez por isso atinja seus objetivos de forma tão visceral - que conta a história de um cantor de country em decadência, acompanhado por seu sobrinho em uma última turnê musical. Nesse filme, o desenrolar da trama é quase frenético em alguns momentos, com uma sucessão de eventos que parece não se importar muito com o trilhamento de uma narrativa convencional, com personagens moralmente perfeitos e que possuem uma redenção moral comum e muito bem fechada. Muito menos é um filme que busca a glorificação de um herói da música. Aliás, é notável como Clint nem mesmo faz questão de “interpretar” as cenas musicais, ou, pelo menos, não da forma como o faria algum “ator do método”. As cenas do filme que adquirem caráter musical, como as apresentações intimistas nos bares, não fazem questão alguma de demonstrar as habilidades musicais do diretor, o que não atravessa em momento nenhum as intenções de sua interpretação. O foco do diretor - e agora pensando também em seu papel como ator - é conseguir traduzir as angústias de um personagem específico para o público e não performar de forma verossímil uma música no violão. Sua preocupação localiza-se muito mais nos seus trejeitos faciais, na iluminação e na forma quase transcendental como esses momentos se encaixam na narrativa. O viés técnico, racional e higienizado da atuação está em último plano. Mais para não se render a uma artificialização do romantismo do que pela busca direta do realismo, o que Clint Eastwood procura é a expressão direta das ações e dos sentimentos de seus personagens, de forma que sejam ultrapassadas barreiras formais e mesmo imposições pessoais no processo - como sua inabilidade como músico, por exemplo-, o que, é claro, nunca tornou seu cinema imparcial ou desleixado em algum sentido. Clint é, nesse sentido, acima de qualquer coisa, um anti tecnicista, mas não um realizador indiferente. Pode-se dizer que delega sua atenção às coisas que realmente importam?
A partir disso, pode-se começar a estabelecer de que maneira esse seu interesse técnico comunica-se com a moral de seus filmes. Susan Sontag já descreveu Albert Camus como um autor de alta capacidade moral, mas pouca inovação formal, no sentido de que suas obras seriam muito mais aclamadas por sua articulação filosófica e temática do que pelos méritos literários propriamente ditos. No caso de Clint, essa dissociação não ocorre, sendo a própria forma de seu cinema o que desvela sua essência moral. Sua potência nesse sentido reside no fato de que é um dos poucos que ainda assume um fazer de cinema imperfeito com o fim de ilustrar uma América imperfeita. Entender justamente que uma forma de representar seu país e de se apresentar um cinema que realmente se envolva com o povo e sua história é realizar tal cinema de uma forma que não sirva apenas como comentário, mas como crítica, elevação e contemplação do objeto criticado em todos seus níveis. Evitar esse processo de higienização do consumo e da produção cinematográfica é uma maneira de Clint assumir a realidade e seus problemas de uma forma muito mais honesta, que demonstra um interesse muito mais genuíno pelo debate e contemplação de seu meio.
Em retomada ao que Adorno diz no aforismo 29 da Minima Moralia: “self-conscious apenas significa a reflexão do ego como acanhamento, como dar-se conta da impotência: saber que não se é nada”. Isto é, em um dado momento da história, a classe artística se abdicou de sua capacidade crítica e se rendeu a uma posição de complacência ante a realidade. O cinema chegou a um estágio em que o academicismo se colocou em posição de tamanho conforto que passou a apenas reconhecer, satirizar e informar sobre a realidade, não existindo mais um interesse real em tangencia-la e, de fato, confrontá-la. Os filmes de Clint Eastwood, portanto, tornam-se necessários ao passo que têm a força para colocar diretamente em embate determinados ideais, principalmente aqueles que se relacionam a certas noções desenvolvidas pela cultura ocidental. O que Clint faz é colocar em cheque a circunstância existencial do indivíduo do ocidente, debater suas considerações sobre família, Estado, liberdade e moral, por meio da própria extrapolação desses termos em contextos narrativos de relativa simplicidade: o adultério de Bridges of Madison County, a morte da filha de Mystic River, a paternidade em A Perfect World. Mas faz isso, obviamente, sob um panorama que expande e universaliza a discussão, nunca se limitando a apenas uma dada função social do fazer fílmico. Em vez de metaforizar uma circunstância social, isolá-la e ilustrá-la quase como um evento alheio à realidade - como a pobreza é tratada, por exemplo, em Florida Project e Gisaengchung, ou o racismo em Get out! -, o problema é posto em sua forma mais crua nos filmes de Clint Eastwood. É o próprio veterano de guerra que se sacrifica para salvar um garoto imigrante em Gran Torino, é o velho misógino que encontra em uma lutadora pobre sua razão de viver em Million Dollar Baby. Seu cinema é composto por uma complexa teia de contradições, que suscitam a impossibilidade de ser de um sistema moral inflexível. Impossibilidade que é posta em evidência por meio da inaplicabilidade prática desse próprio sistema. Em um sentido que retoma a sua intimidade com os atores, a objetividade da encenação e sua praticidade formal, talvez a maior força do cinema de Clint Eastwood está justamente na forma como ele se apega a um viés muito pragmático de sua problemática, aproximando ao máximo sua discussão de seu público. Mas, vale ressaltar, seu tratamento moral nunca é um processo conivente com determinados costumes, posto a fins do sistema vigente: o que se observa é o choque implosivo de todo um constructo moral em linhas narrativas que quase recompõem parábolas.
E agora, retomando em que ponto da produção em si esses filmes se destacam, basta perceber como suas produções dos últimos quinze anos não obtiveram nenhum grande sucesso ou destaque comercial, à exceção, talvez, de American Sniper, o que coincide com o estabelecimento da década de 2010/2020 como o período de maior estagnação criativa e de superlotação de blockbusters já visto pelo cinema. O fenômeno maior de Clint Eastwood na contemporaneidade está na maneira como ele se localiza na indústria, principalmente nesses últimos anos, existindo quase como uma pedra no sapato de seus produtores. Tornou-se para as grandes companhias um alguém que teve um passado respeitoso e que apenas por isso ainda é abraçado e possui seus projetos financiados. Esse tratamento desrespeitoso com relação à pessoa de Clint não deixa de ser um grande sinal de sua integridade nesse meio.
É um verdadeiro provocador, à medida que tem a noção de sua posição mas que nunca se coloca em cenário de conformidade: Clint continua a não entregar o que se espera dele. Cry Macho, seu penúltimo filme, revela muito desse desapego tardio do Clint, que mostra justamente como o fim de sua carreira não ocorrerá nos moldes exigidos pela indústria. Basta comparar o material promocional de Cry Macho com o produto final para que fiquem claras as diferenças das visões que Clint e a indústria tinham de seu resultado. Não é uma obra que resgata uma mitologia heróica épica de Unforgiven, mas que também não deixa de ser autoconsciente e até mesmo autobiográfica em vários sentidos. O diferencial nesse sentido é que Eastwood, mesmo se colocando na posição de protagonista na maioria de seus filmes, reconhece que seu cinema não é sobre ele e que a obra é muito maior que o autor: se reconhece como uma figura catalisadora para suas discussões e nunca como seu fim. Ele se diferencia pela forma como essa consciência de si mesmo é implementada e, ainda mais, pela forma como se desenrola: a trama caminha sempre para a anti-espetacularização, rumo ao apagamento do mito individual em razão do homem coletivo. E nesse sentido, no equilíbrio entre a sobriedade clássica e a consciência moderna que se estabelece um dos pontos definidores de sua carreira: a capacidade de admitir a convivência e não simplificação de momentos e cargas históricas em seus filmes, evidenciando o que mais aproxima um movimento dialético de seu cinema.
De modo a concluir um certo posicionamento que defendi a respeito da carreira de Clint Eastwood, é imprescindível a discussão de seu filme mais recente, Juror #2. Mais um projeto que, assim como Cry macho, foi anunciado como o provável último filme do diretor, a narrativa de Juror #2 não se apresenta como nenhuma grande despedida ou cujo tom admite um teor autobiográfico. É um projeto simples, que se revela como um filme de tribunal que trabalhará, de maneira geral, o tema da justiça. Em um nível mais superficial, , Juror #2 já se mostra como uma forma de resistência pelo simples fato de não ter sido admitido pelas salas de cinema regularmente, sendo direcionado quase que diretamente para os sites de streaming. Ter sofrido esse suposto boicote da Warner Brothers, nesse ponto, é até mesmo um ótimo sinal. Mais um indício da inadequação de Clint como um diretor que navega em um contexto cuja maré se direciona de forma totalmente desfavorável a esse tipo de produção. A simplicidade formal do filme, que se resolve na maioria das vezes com planos e contraplanos, cortes econômicos e atuações austeras de seu elenco, também são fatores que chamam a atenção. É provavelmente um dos filmes mais econômicos do diretor em muitos sentidos, o que, de certa forma, o obriga a trabalhar com o pouco que tem, tornando as ideias enxutas e o filme cada vez mais sintético. Tanto fatores econômicos como limitações da idade forçam o diretor a encontrar dentro do set exercícios que sintetizam tendências que, de uma forma ou de outra, tangenciam toda a sua obra. Isso não indica em nenhum momento a simplificação de seu projeto, mas a capacidade de cortar coisas que, em tese, seriam adereços desnecessários para seu fazer fílmico.
Basta comparar, agora sim em um sentido qualitativo, ao que Robert Eggers, Ari Aster, Jordan Peele, Adam McKay têm realizado em seu cinema - o que, por sua vez, iniciou-se com Scorsese, Spielberg, Mike Nichols - e perceber qual é de fato a verdadeira relevância dessa tendência “econômica” de Clint Eastwood. Os caminhos trilhados pelo cinema contemporâneo fizeram se perder aquilo que Metz quis dizer ao declarar que o cinema não conta belas histórias por ser uma linguagem, mas, por contar belas histórias se tornou uma linguagem. No entanto, a interrupção desse pensamento não é algo que ocorre sob um viés romântico e idealizado do cinema, mas que infere em toda a elaboração do produto estético. É uma crítica no sentido de que a produção cinematográfica contemporânea sobrepõe a construção de um discurso, a pose de uma estética e a autoconsciência fílmica sobre o próprio fazer cinematográfico. Parecer cinema, parecer narrativo e parecer disruptivo passaram a importar muito mais do que sê-lo de fato. E a partir disso, encontram-se projetos histriônicos, que ignoram o essencial da decupagem em virtude de um modernismo performático e que, no fim das contas, fica totalmente aquém em termos de um verdadeiro aprofundamento em qualquer nível de debate. Quando, em contrapartida, Clint Eastwood, no final de Juror #2, coloca em cena, com um plano/contraplano uma discussão sobre justiça e liberdade, direito privado e público, que sintetiza e expande tudo o que o filme havia discutido anteriormente. Por meio de uma modesta condução de close-ups, retoma aquela simplicidade aterrorizante de planos filmados em outro momento por Ford, Fleischer e Rossellini.
Há algo específico em seus filmes, entretanto, que o eleva da posição de um simples comentador do passado para se tornar um grande observador da atualidade, o que torna seu cinema, por conseguinte, uma grande fonte de crítica e não apenas de contemplação. É válido relembrar que, ao serem mencionadas as referências práticas para o diretor, foram citados como principais os nomes de Michael Cimino, Don Siegel e Sergio Leone, figuras que inegavelmente já estavam inseridas em um contexto de decadência do classicismo à época da realização de seus filmes. Então é justo se perguntar de que maneiras essas referências influenciaram em um fazer de cinema como o de Clint, quando elas mesmas já fugiam de um contexto clássico propriamente dito? Basta perceber como tais diretores, em consonância com o então ator e aprendiz Clint Eastwood, assumiram de uma forma muito menos cômoda e cínica a articulação das aparentes mudanças exigidas por um contexto de morte do Classicismo em seus filmes. A tendência promovida pelo pensamento crítico americano sessentista passou a enxergar o passado como um elemento hermético cuja função se limitava a marcas culturais e um legado moral a ser infantilmente superado. Em contrapartida, Eastwood e aqueles que o influenciaram combatiam esse pensamento, construindo uma obra que tomava como ponto de partida a ideia de assumir os riscos, confrontar as mudanças ocorridas na transição para o modernismo de uma maneira que investigasse minuciosamente a causa primeira dessas transformações. Isolar o passado e transformá-lo em comentário cultural nunca foi o interesse real de nomes como Clint Eastwood, Paul Newman e Monte Hellman. Portanto, à medida que o desejo pela concretização dessa critica imanente do cinema enquanto fenômeno moderno se materializa na figura de Clint, ele se consolida como um dos nomes que melhor conseguiram discutir essa noção por meio de seu cinema. Dentro desse contexto, o que passa a diferenciá-lo é o reconhecimento de como, e em quais níveis, deve-se realizar o elogio ao moderno em sua consciência, mas de uma forma que nunca se rende à descredibilização irreverente do passado. Isto é, não se limitar a um apego romantizado e reacionário do classicismo, mas tentar compreender suas limitações ou mesmo proficuidade dentro de uma conjuntura dada como invariavelmente “contemporânea”. E é por isso que o Clássico não surge em Bridges of Madison County da mesma forma boba e plástica -a que se dá erroneamente o nome de maneirismo- de One from the heart de Coppola. Da mesma forma que o moderno que nasce em Unforgiven não se refugia em um minimalismo performático e autoconsciente à maneira do que se vê em American Gigolo de Paul Schrader. Desde sua abordagem temática quanto formal, observa-se como o tratamento do passado, do contemporâneo, do conceito daquilo que se mantém e do que se transforma, ocorre de uma forma muito melhor pensada, elaborada em níveis muito mais comolexos.
A resistência elaborada pelo cinema de Clint, portanto, não é em nhum momento direcionada ao modernismo em si, o que o reduziria a uma figura simples e reacionária, como se desenvolveram a maioria de seus contemporâneos. O que de fato concentra o foco de sua reprovação é a adoção de uma consciência moderna inofensiva sobre o passado, que não consegue refletir direta e incisivamente sobre o objeto contemplado. Isto é, o que o torna grande não é a decisão per se de se retomar em algum nível o fazer de cinema clássico, mas o fato de fazê-lo em um momento em que o que se espera do fazer fílmico é justamente o contrário. A tendência vigente é a de se observar o passado, a referência clássica, sob um olhar exclusivamente nostálgico e higienizado, que não suporta observar de forma material como, de fato, esses elementos moldaram o que se entende como linguagem e o pensamento contemporâneo. O que há de disruptivo em seu cinema não é a tentativa de replicar o classicismo em si, mas assumir a impossibilidade da conclusão dessa aplicação e insistir nela mesmo assim, até conseguir presenciar o seu total desgaste, sua ruptura e posterior implosão. Reduzir o seu cinema a uma simples abstenção de marcas autorais claras, ou enxergá-lo como um cinema de histórias simples e acessíveis é subestimar a capacidade do Clint como autor de pensar o mundo e si mesmo -e confrontar suas próprias crenças e contradições- dentro de seus filmes. Reduzi-lo é deixar de pensar como todos esse elementos se juntam de uma forma muito própria e complexa na concretização de sua obra. Simplificar o cinema de Clint Eastwood a uma suposta reunião de contos da moralidade ocidental é ignorar um dos pouquíssimos realizadores que possui a coragem de assumir o clássico não como uma barreira fixa e canônica, que deve ser simplesmente repetida e referenciada, mas que o contempla como um objeto a ser discutido e confrontado, mesmo que a partir de sua própria continuidade. Um cinema que visa a atingir essa reflexão ainda que sua realização plena seja impossível.