ARTIGO | A Rebelde e Iconoclasta estreia no Western de Clint Eastwood

At the time, I needed a mask rather than an actor. And Clint Eastwood had only two facial expressions: one with the hat & one without it
— Sergio Leone

O rosto de Clint Eastwood é a máscara perfeita do cowboy. Seus olhos cristalinos semicerrados pela virtude rústica, seu biotipo esguio com uma rudeza masculina seguida da musicalidade gestual, necessária para qualquer um que tenha estilo, assim como a confiante caminhada quebrada de John Wayne. 

Quer quanto ator ou quanto autor, ele deixou uma marca significativa no cinema, estabelecendo-se não somente como um nome de prestígio, mas como um símbolo do próprio gênero - e com isso, vem toda a complexidade linguística e polêmica que vem junto dos símbolos, algo que ele próprio buscaria compreender e desconstruir ao longo de toda sua extensa carreira, da qual o western constitui uma parcela icônica e apaixonada, que até hoje é porta de entrada para descobrir a obra de um dos maiores diretores estadunidenses da história. 


Sobre a Lápide de um Gênero 

Em High Plains Drifter (1973), Clint Eastwood já exibe um traço de autor que se perpetuaria em de toda a sua filmografia: a da provocação temática através de um pensamento crítico narrativo e formal, um certo revisionismo humano e cinematográfico da tradição e do acontecimento social. Sempre transitando entre a sutileza e a brutalidade, entre o moderno e a tradição, sua mise-en-scène é sutilmente elaborada e contida, mas focada de modo obsceno em um naturalismo na performance dos atores. Sua genialidade é, então, encontrar um equilíbrio - esse equilíbrio capaz de fazer um homem tipicamente conservador ter uma obra progressista sem nunca trair seus valores. 

O western, ainda que parta do pretérito histórico, não é sustentado apenas pela precisão de uma reconstituição visual como é em filmes de época. Em “O western ou o cinema americano por excelência”, Bazin explica que o charme próprio do gênero surge dos valores ao redor das cenas e elementos retratados, das quais chama de mitos, porque eles reproduzem instantaneamente em nossa consciência signos e símbolos de sua realidade dos quais já são íntimos para nós, um encontro entre “uma mitologia como meio de expressão”. 

Aqui, ele perpetua esses pilares particulares da mitologia do western internamente como personagens tipificados, cenários recorrentes e a própria estrutura de poder, dos meandros sociais a ordem duelista, e também no tratamento cinematográfico externo, dançando entre a sobriedade do clássico e a estilizado spaghetti leoniano, como o uso de escalas contrastantes, elementos em diferentes níveis de profundidade, movimentos de câmera marcantes e o fechamento do plano como atenuante da tensão. 

Todas as temáticas recorrentes de seus filmes como por exemplo a culpa, a redenção e a obsolescência partem inclusivamente de um só aspecto: a relação com a tradição. A tradição é a matéria-prima do cinema de Clint Eastwood, e os costumes sociais, a identidade, os valores morais e as crenças estendem-se sobre a imagem e a transforma em símbolo que, através de um conjunto comum, define um gênero. 

Contudo ao invés de criar uma réplica que somente perpetuaria esse diálogo de símbolos, o filme reprime a típica mitologia particular do gênero por uma autoconsciência sombria, densa e sobrenatural. O mundo árido de High Plains Drifter (1973) questiona a moralidade e a ordem vigente com um ímpeto de rebeldia que flerta com a Nova Hollywood e seu revisionismo de gênero crítico e reverência a bagagem cinematográfica - como ele próprio dedica no fim, Para Leone e Don Siegel -, mas ao invés de propor uma crítica dentro desse mundo cultural, ele usa desses símbolos próprios e conscientes como formas de condenação. De certo ponto de vista, a visita do estranho não condena só aos moradores dessa vila, mas ao próprio gênero que é assombrado pelo seus cânones - algo que Clint voltaria a realizar quando simbolicamente fez o último grande filme do gênero em Unforgiven (1992). 

O Personagem de Eastwood invade o espaço mitológico do Western e impõe através da câmera sua sombria consciência

Centralizado na figura mística do estranho, a primeira imagem que salta é dele rompendo o horizonte calorento em nossa direção, um cavaleiro transparente, seguida de uma trilha sonora ruidosa de vozes distorcidas - e são apenas estes caracteres destinados a explicitar ao espectador quem é este personagem. O corte seco nos realoca em uma nova localização geográfica, mais próximos da silhueta do cowboy e com a trilha sonora retomando uma sonoridade típica de um western, e esse aceno já nos diz que saímos do ambiente de estranhamento e retornamos à tradição do estilo. Sem a contextualização ou introdução narrativa adequada, resta-nos apegar ao signo da imagem que vem do extra-diegético:  A imagem do cavaleiro de chápeu trauteando a cavalo nos morros empoeirados e planícies áridas, até ir de encontro a uma pequena cidadezinha litorânea já nos é visualmente comum, assim como tudo que seguirá nessa abertura.

Não há aqui uma construção clássica de arquétipos, e sim uma imediata exibição frontal desses mitos. Todas as locações são psicografadas com letreiros que esbanjam suas funções: hotel, merchandise, xeriff, saloon. E esses mitos também estão presentes na fisiologia das personagens: os homens mais velhos, os fanfarrões, as mulheres, os estranhos alívios cômicos, o barman. Tudo está narrativamente no exato lugar que deve estar, mas a câmera desíncrona impõe um fluxo a essa estagnação do rotineiro dos moradores que saem e entram de campo pelos cortes e pelo próprio limite do quadro, enquanto a personagem de Clint permanece envolto em mistério. 

Adentramos na cidade de Lago em travellings contínuos seguindo seu percurso rectilíneo enquanto é observado pelo forte sol e pelos moradores em diferentes recortes angulares, olhando de baixo ou de cima, enquanto desconfiam e temem o estrangeiro. Inicialmente, há uma delimitação muito evidente entre o espaço em que habitam e a estrada que é percorrida pelo invasor. Dos múltiplos planos, seu rosto frontal só é mostrado quando está isolado no quadro, enquanto a reação dos outros personagens é invadida pelo movimento da câmera ou pelo próprio pistoleiro, que de costas ou lateralmente, atravessa toda aquele cemitério de personas e de estruturas - como no quadro em que passa como reflexo pela janela como uma forma fantasmagórica. 

A cena a seguir do confronto na barbearia é, espacialmente, muito interessante, por mostrar o caráter de disrupção da personagem. O filme mostra essa interpenetração do espaço, primeiro visionando a cena a partir do reflexo do espelho que cria essa sensação de janela, e em seguida através do próprio fundo enquadrado na porta aberta, dividindo e conectando perfeitamente o interior do exterior, a propriedade e o selvagem Oeste. E após o tiroteio, o que acontece é que um dos homens atravessa a janela após ser baleado, ou seja, há um rompimento desse espaço particular, uma invasão e uma destruição sangrenta dessa segura delimitação, que é justamente o que perscruta o filme. 


Western Anárquico

Não é estranho ao espectador a narrativa de um indivíduo que foge do padrão heroico juntar-se a outros personagens não convencionalmente habilidosos para protegerem uma cidade ou uma locação, mas aqui essa súbita ascensão de autoridade da personagem de Eastwood tem uma dimensão política muito mais destrutiva e psicológica que propriamente uma romantização do individualismo: A sombra do anti-heroi americano - que é também uma sombra do próprio Eastwood, de Dirty Harry ao Pistoleiro sem Nome - se projeta sobre a cidade e todas as normas sociais estabelecidas e todas os contratos sociais vão progressivamente sendo desapropriados. 

Ele recebe tudo de graça, distribui cargos, tira as pessoas do hotel e abusa de seu poder ao ponto de esvaziar completamente o valor daqueles elementos materiais, criando assim um Western anárquico que se destitui da autoridade de seus símbolos, e a reação populista não é só uma ácida forma de politização, mas também revela um certo gosto pelo autoritarismo do homem do oeste, portanto o homem ocidental. Mas quando esse autoritarismo vira contra seu gosto, inicia novamente um ciclo de reestruturação social que deve ser moldado sempre a partir da vontade do indivíduo. 

A cruel cena do estupro é o extremo da selvageria e, semioticamente, o rompimento com a delimitação clássica do gênero. Ainda no texto de Bazin, ele analisa que a figura feminina tem um valor essencial que foge do típico maniqueísmo de mocinhos e vilões dentro do western, é ela responsável por esse culto das virtudes sociais, são elas que “contém em si não apenas o futuro físico, mas, graças á ordem familiar à qual aspira como a raiz à terra, seus fundamentos morais”. 

Logo, esse rompimento violento a partir da concupiscência masculina é a destruição do próprio moralismo relacionado a narrativa, e seu redirecionamento para uma esfera de efeito mais psicológico - na fotografia, iniciamos com um movimento de câmera dela a ser arrastada pelo celeiro e em seguida a câmera se posiciona num ponto de vista do voyeur, e naquele alto contraste de adornos sombrios, estabelece uma relação de poder através do contra-plongée e do plano das pernas - o ato é horrendo por si só, mas seu tratamento imagético torna o espectador consciente da destruição simbólica ao ponto de esvaziar o mundo habitual do gênero, nos coloca nesse limbo, nessa zona limiar quase fantasiosa.

O filme flerta muito com esse plano da fantasia em um sentido da interioridade psicológica, e a forma que expõe seu lado gráfico de violência e destruição mais do que uma reprodução espetacular de cativação do espectador, é um reflexo do próprio imaginário do cowboy dentro do gênero, tanto que todas as cenas são constituídas de uma certa permissividade narrativa: a execução a chicotadas ganha um ar onírico e sobrenatural como um pesadelo fora do campo do real, o confronto final entre os bandidos e a cidade é justificado pelo estado de exceção de sobrevivência, e várias das cenas acontecem sob a máscara da noite e da moral, do bem maior, da solução. 

Essa mesma dimensão fantasiosa coletiva serve de objeto de análise crítica da própria formação política dos Estados Unidos que, assim como o western, esconde seus desejos pecaminosos e oculta seus crimes sob a moral, a religião e o poder político e econômico. A cidade pintada inteiramente de vermelho no final é, simultaneamente, a exposição dessa hipocrisia e a própria condenação do símbolo dentro do gênero. 

Por fim, tudo retorna a personagem de Clint Eastwood que personifica esse além-do-homem sem rédeas dentro da narrativa, isolado desse coletivo. Apenas a ele é destinado uma criação mítica, apenas ele ganha o deleite de ser filmado em reflexos, em silhuetas, em contra-luzes. Ao contrário de todo filme, onde os personagens vão progressivamente perdendo sua tipificação e caminhando por dramas mais complexos, Clint eleva-se como uma figura quase sobrenatural nas chamas daquela cidade, um agente punitivo que executa de forma cruel cada um daqueles bandidos com uma brutalidade infernal como se estivesse em um giallo sádico. "Quem é você?", a vítima pergunta antes de morrer. Sem Resposta. Ninguém. Já não há mais mito e a tradição, apenas a imagem literal destruída, enevoada que desaparece na paisagem calorenta como uma miragem. 

É o caráter bruto e provocativo de High Plains Drifter (1973) e a suas diferentes influências de outro gêneros que a torna uma obra muito interessante, imatura e rebelde na filmografia do diretor, mesmo não sendo tão chamativa como os demais filmes. E muito de sua complexidade reside na maneira intensa que lida com os signos e símbolos do Western explorando-os de uma perspectiva incomum. 

“Its what people know about themselves inside that makes them afraid”.

Próximo
Próximo

ARTIGO | O Colapso de um País